Um ensaio do crime e castigo à brasileira em 'Sem Pena'

Eugênio Puppo investiga sistemas judiciário e prisional do País

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Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Por Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

Que algo anda mal nos sistemas judiciário e penal do Brasil é coisa que já se sabe há muito tempo. Mas talvez essa realidade nunca tenha sido esmiuçada de forma tão contundente - e original - quanto neste Sem Pena, documentário de Eugênio Puppo. Trabalhando em parceria com uma entidade, o Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), Puppo recolheu rico e farto material cinematográfico sob a forma de depoimentos de detentos, ex-presidiários, advogados, magistrados, funcionários do sistema penal, etc, tudo num total de 274 horas de matéria cinematográfica bruta. Teve de refiná-la e depurá-la para caber num longa-metragem de duração palatável. 

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O tema, à primeira vista indigesto, mostrou-se de interesse a muitas pessoas. Tanto que, participando do recém-encerrado Festival de Brasília, Sem Pena foi agraciado com o prêmio do Júri Popular, dado ao filme que melhor dialoga com o público. De fato, quem estava na sessão pôde testemunhar o quanto o filme tocou as pessoas e foi aplaudido no final. Prova de que o cinema não precisa necessariamente se limitar à fatia (majoritária) do escapismo. Há gente ainda interessada em conhecer a realidade do País. Aliás, essa aposta em um “cinema necessário” é a que atualmente mobiliza o diretor do circuito Itaú, Adhemar Oliveira.

Sem Pena mostra situações kafkianas. O filme já abre com o depoimento de uma pessoa dizendo que foi presa sob a acusação de molestar uma menina. Conta como atravessou sua experiência no judiciário e na prisão. Enquanto ouvimos a sua voz, vemos algumas imagens poderosas e expressivas. Pinturas, alusivas à situação narrada, mas de modo muito indireto. Apenas no final descobriremos a que se referem. Em outras situações, a técnica narrativa se repete. Ouvimos as pessoas, não vemos os seus rostos. Imagens se sucedem. Por exemplo, ao debater a infernal burocracia do Judiciário, a câmera passeia por um infinito arquivo de pastas e papéis, algo que lembra a Biblioteca de Babel de que falava Jorge Luis Borges, um cultor de labirintos. 

Puppo conta que foi ele quem se decidiu por esse formato pouco usual. “Desde o início, me incomodava fazer um filme com ‘cabeças falantes’, comuns em programas de TV ou em boa parte dos documentários”, disse em entrevista ao Estado. Havia outro motivo para esse tipo de procedimento. Ao entrevistar as pessoas envolvidas com a justiça, Puppo se defrontou com algo que não esperava. “Muitas vezes, as pessoas simplesmente não entendiam do que estavam sendo acusadas”, diz. Esse sentimento desesperador, absurdo, de alguma forma se amplifica quando ouvimos vozes e não vemos rostos. “Então comecei a experimentar as entrevistas com imagens dissociadas e o resultado foi bastante positivo, me chamou a atenção como discurso, ficava mais forte e interessante.”

Continua forte, mesmo quando o “dispositivo” é violado e vemos perfeitamente o rosto de uma senhora aparentando uns 70 anos (depois descobrimos que tem apenas 53), negra e pobre, acusada de promover tráfico de drogas no cortiço onde mora. Nesse momento, o filme assume tom mais convencional e é dele que tira a força que essas imagens, e esse depoimento, merecem. De certa forma, toda, ou pelo menos uma parte, da tragédia social brasileira passa pelo caso desta mulher. 

Sem Pena vai desses casos particulares a considerações gerais, desmontando alguns preconceitos e equívocos. Por exemplo, fala-se muito que este é o país da impunidade. O filme, pelo contrário, mostra que o Brasil tem a terceira maior população carcerária do mundo, atrás apenas de China e Estados Unidos. Mostra também que as queixas sobre a morosidade da justiça têm de ser matizadas. Ela é lenta para determinadas classes sociais e célere quando se trata de julgar e encarcerar pobres. Está tudo lá, dito por magistrados, advogados e autoridades penitenciárias. O filme dá o que pensar. E é a isso que se destina. Filmes feitos para o espectador refletirNão é de hoje que Adhemar Oliveira promove o “cinema necessário” em seu circuito. Colocou em sala O Mercado das Notícias, crítica contundente à mídia. Esta semana lança Sem Pena e, dia 9, Ilegal, documentário sobre medicamentos à base de maconha, proibidos pela Anvisa, “contrabandeados” pelos pais de crianças portadoras de epilepsia refratária. É cinema de utilidade pública, no melhor sentido da expressão.

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