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Toni Servillo vive dois personagens em 'Viva a Liberdade'

Novo filme é dirigido por Roberto Andò

Por Luiz Carlos Merten
Atualização:

Se um Servillo é bom, que dirá dois. Duas vezes vencedor do Prêmio Europeu de Cinema como melhor ator - em 2008, por O Divo, em 2013 por A Grande Beleza, ambos de Paolo Sorrentino -, Toni Servillo firmou sua reputação primeiro no teatro, antes de avançar como um rolo compressor também nos filmes. Sua parceria com Sorrentino já é lendária, incluindo não apenas os filmes citados, mas também As Consequências do Amor, pelo qual ganhou o David di Donatello, o Oscar italiano, como melhor ator de 2005. Servillo agora interpreta Viva a Liberdade, de Roberto Andò. O cartaz mostra duas expressões do ator - uma grave, a outra, uma explosão - de quê? Euforia? Servillo interpreta gêmeos no filme. O espectador não sabe disso imediatamente. O filme conta a história do secretário de um grande partido italiano de oposição, Enrico Oliveri, que vai para um debate decisivo, do qual poderá depender sua carreira, e o futuro do próprio partido. Submetido a uma grande pressão, ele some. É quando seu assistente descobre a existência do gêmeo, Giovanni Ernani. O cara é bipolar, acaba de sair de uma internação psiquiátrica. A ideia é louca, mas face ao que pode ocorrer, se Enrico não aparecer, o negócio é substituí-lo. O assistente lança a isca para um jornalista que entrevista o irmão, como se fosse o candidato. É aquilo que se chama de uma entrevista de choque. Giovanni, fazendo-se passar por Enrico, faz revelações, acusações. O inesperado é que a ‘bomba’ explode em favor do partido. Giovanni, como Enrico, não para de dar entrevistas e fazer pronunciamentos que o público e a imprensa absorvem, felizes. Torna-se um candidato imbatível. Enquanto isso, o verdadeiro Enrico, à beira de um ataque de nervos, vai se abrigar na casa da ex-namorada, na França. Ela se casou com um diretor asiático e trabalha no novo filme dele. O secretário adentra pelos bastidores do cinema. Como se não bastasse o filme sobre a política, Viva a Liberdade quer enfocar também o próprio cinema. É um pouco demais, de certa forma enfraquece o relato. Roberto Andò, que assina Viva a Liberdade, é siciliano de Palermo e chegou ao cinema pela via da literatura, apadrinhado por Leonardo Sciascia. Seus primeiros escritos agradaram tanto ao autor de Portas Abertas e O Dia da Coruja que ele o lançou na imprensa e no cinema. Andò virou assistente - de Francesco Rosi, Federico Fellini, Michael Cimino e Francis Ford Coppola (em O Poderoso Chefão 3). Depois disso, a trajetória diversificou-se e ele dirigiu para teatro (um texto de Italo Calvino), fez documentários e até dirigiu o Festival de Palermo e a Orestiade de Gibelina. O primeiro longa, Diario Senza Date, impressionou tanto Giuseppe Tornatore que o diretor de Cinema Paraíso produziu seu filme seguinte, Il Manoscritto del Principe. Viva a Liberdade, que se baseia num livro do próprio Andò - Il Trono Vuoto -, é o primeiro filme do cineasta lançado no Brasil.

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Il Trono Vuoto, O Trono Vazio. Perfeito para uma história de substituição. Há uma tradição política do cinema italiano que persiste em autores como Marco Bellocchio e Nanni Moretti, valendo lembrar que esse último fez, há um par de anos, Habemus Papam, em que Michel Piccoli, num momento de crise, deserta do trono de São Pedro. Muitos críticos citam a grande fase política dos anos 1960 e 70 - Francesco Rosi, Elio Petri e Damiano Damiani. O cinema expressava um debate nacional que era muito forte. Pier-Paolo Pasolini já alertava para a ‘direitização’ da Itália, consolidada por Silvio Berlusconi e seu controle dos meios de comunicação. O próprio Berlusconi já é um Duce de segunda, um ‘buffone’. Não admira que Roberto Andò, para falar de política, recorra a uma farsa (a troca de identidade) e à sátira. Um filme como Viva a Liberdade, com seu desfecho dúbio, depende muito da qualidade da interpretação. Tudo resulta de um tom, não naturalista, que o diretor só pode alcançar trabalhando em estreita colaboração com seu elenco. Servillo é um ator que possui um registro muito amplo. No cinema desde 1992 - o primeiro papel foi em A Morte de Um Matemático Napolitano, de Mario Martone -, ele tem se revelado bom na comédia como no drama. E é minimalista. Às vezes, um olhar, um suspiro já entregam tudo o que aflige a interioridade do personagem. Seus grandes olhos tristes evocam Buster Keaton e Totò - dão a impressão de já ter visto tudo. E ninguém sabe ser irônico como ele - aquele sorriso sardônico foi devastador em A Grande Beleza. Apesar disso, das várias indicações do filme para o David di Donatello, Viva a Liberdade só venceu em duas - melhor roteiro, do próprio Andò, e melhor coadjuvante para Valerio Mastrandea, como o assistente. O próprio Mastrandea é outro grande ator italiano contemporâneo. No cinema desde 1995, também vem colecionando seus Davides. Além do de coadjuvante pelo filme de Roberto Andò, ganhou o de melhor ator de 1970 por A Primeira Coisa Bela, de Paolo Virzi. O elenco completa-se com um poderoso trio feminino - Anna Bonaiutto, Valeria Bruni Tedeschi e Michela Cescon. Anna, vale lembrar, contracenou com Servillo em O Divo.

VIVA A LIBERDADETítulo original: Viva la Libertà. Direção: Roberto Andò. Gênero: Comédia (Itália/2013, 97 min.). Classificação: 12 anos. Humor contido revela a miséria do mundo atual - CRÍTICA Farsa política das mais inteligentes, Viva a Liberdade, de Roberto Andò, tem Toni Servillo no papel de Enrico Oliveri, secretário do principal partido de oposição na Itália. 

Como as coisas não andam bem, e ele se sente sob tremenda pressão, Oliveri resolve dar um tempo. Reencontrar seu eixo, como se diz. Com seu sumiço, num momento crucial, seus assessores entram em desespero e buscam uma solução de emergência para suprir o desaparecimento do líder. 

Seria quase redundante dizer que Servillo está bem no duplo papel que a história de Andò lhe oferece. Servillo está sempre bem. Melhor ainda: está sempre excepcional em suas atuações. É o principal ator italiano do presente. Basta vê-lo em filmes como O Divo ou A Grande Beleza, ambos de Paolo Sorrentino, por exemplo, ou em Gomorra, de Matteo Garrone, para se convencer do seu talento. Servillo é fera. Empresta uma intensidade tal aos personagens que os torna inesquecíveis, mesmo quando o registro não é realista. Ou talvez por isso mesmo. 

Porque, como se sabe, a política, em boa parte, é uma arte da imagem. E da palavra. O político não precisa ser. Basta parecer. O que diz não precisa ser verdade, ou mentira. Basta que produza os efeitos desejados. Pode viver numa atmosfera de sonho, desde que convença seus eleitores a segui-lo nessa alucinação. 

Nessa arte da ocultação/revelação, o que poderia acontecer se, por exemplo, um louco talentoso tomasse o lugar de alguém são, porém muito convencional? Não é impossível que, numa situação de caos, ou de estagnação, um pensamento original, por pouco razoável que possa parecer, seja mais eficaz que atitudes de rotina.

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Essa adorável farsa política, muito bem filmada e interpretada, tem endereço certo: a medíocre Itália pós-Berlusconi. Levada ao fundo do poço pela longa presença do Cavaliere na liderança política, não sabe o que fazer depois de livrar-se dele. Cambaleia em crise permanente, sem ver mais alternativa do que apelar a burocratas da economia para sobreviver à estagnação. 

Mas, pensando bem, Viva a Liberdade tem alcance maior, e se estende para além das fronteiras italianas. Faz a crítica mordaz da atividade política em geral, essa que não se renova há séculos, embora o mundo tenha mudado muito, e continue a mudar a cada dia. 

Falta à política, e aos políticos, imaginação para reinventar-se na luta, manutenção e uso do poder. Para que o poder não seja um fim em si, mas instrumento para realizar determinadas mudanças na sociedade. 

Nessa comédia aguda e refinada, Andò faz mais pela reflexão sobre a indigência política da contemporaneidade do que vários ensaios de sociologia. E o faz com inteligência e senso de humor. O humor contido, se sabe, celebra a vitória do riso lúcido sobre a miséria do cotidiano./LUIZ ZANIN ORRICHIO

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