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Seleção de Cannes tem franceses demais e latinos de menos

'Deephan', de Jacques Audiard, ganhou a Palma de Ouro, prêmio máximo do festival

Por Luiz Carlos Merten/CANNES
Atualização:

Havia gente tendo ataques de nervos no final da premiação do 68.º Festival de Cannes. Um jornalista português achou uma vergonha o júri presidido pelos irmãos Coen ter premiado Mon Roi, de Maïwenn. Aqui no Estado, o repórter já cravara essa vitória. Disse que Emmanuelle Bercot faria história no maior festival do mundo. Depois de abrir o festival, como realizadora, com La Tête Haute, ela tinha toda chance de vencer o prêmio de atriz por seu papel no filme de Maïwenn. 

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Ambas, a atriz e a diretora, já haviam trabalhado em Polissia, premiado em Cannes em 2011. Os críticos detestam Maïwenn. Acham-na ingênua, quando não “naif”, em sua visão de cinema e de mundo. Mas ela constrói suas cenas na intensidade. Leva os atores ao limite, improvisa com eles. Há um diálogo que beira o inacreditável em Mon Roi. Depois de ter orgasmo, Emmanuelle chora e diz que seu ex reclamava de sua vagina larga. Vincent Cassel, que contracena com ela, diz que o problema não era dela, mas da genitália do ex.

O prêmio para Emmanuelle Bercot, dividido com a Rooney Mara de Carol, de Todd Haynes, mostrou que os Coen e seus jurados não estavam ali para satisfazer expectativas, e sim para subvertê-las. A imprensa norte-americana queria Cate Blanchett e já antecipava outra indicação para o Oscar, por Carol. O prêmio de interpretação masculina também não foi para os atores de Paolo Sorrentino em Youth – que aliás, não ganhou nada. Vincent Lindon foi o vencedor, por A Lei do Mercado, de Stéphane Brizé. Foi o filme mais engajado, de esquerda, da competição, um duro ataque à desumanidade das leis do mercado, que transformam o desemprego em ferramenta para corrigir a baixa dos lucros.

O diretor Jacques Audiard, à esquerda, em seu discurso após receber a Palma de Ouro por 'Dheepan' Foto: LIONEL CIRONNEAU

Vencedor do prêmio da crítica, o húngaro Laszlo Nemes levou o Grande Prêmio (do júri) por seu belo O Filho de Saul. O outro favorito do repórter, o mexicano Michel Franco, levou o prêmio de roteiro por seu longa em língua inglesa, Chronic. E a Palma de Ouro foi para a França – Dheepan, de Michel Audiard. Esse, sim, foi o mais inesperado dos prêmios, mas talvez os jornalistas não tenham prestado atenção. A entrada dos convidados já antecipa um pouco o resultado. Só vai quem ganha. E Audiard, com seu chapéu peculiar, chegou sorridente, superfeliz. Algum passarinho já lhe cantara que a noite seria boa para ele.

As vitórias de Jacques Audiard, Stéphane Brizé e Maïwenn foram boas também para o presidente do festival. Embora a seleção oficial seja uma escolha do curador Thierry Frémaux, Pierre Lescure, que substitui o lendário Gilles Jacob na função, estava sendo criticado pelo excesso de filmes franceses – cinco! – entre os 19 da competição. Ele pode agora apresentar resultados e fortalecer-se no posto. O prêmio de mise-en-scène (direção) contemplou o filme talvez mais refinado dos que concorriam à Palma. Mesmo quem reclamou da dramaturgia de O Assassino, o filme de artes marciais do mestre de Taiwan, Hou Hsiao-Hsien, reconheceu a beleza das imagens e da trilha, a elegância dos movimentos de câmera. Tudo isso compõe a mise-en-scène e, para quem consegue ver, também as dramaturgia sempre tênue, delicada do cinema de Hsiao-Hsien.

Para dizer a verdade, o mais discutível dos prêmios foi o do júri, mas também era esperado. O humor negro e uma certa bizarrice de The Lobster, do grego Yorgos Lanthimos – na Terra do futuro, os solitários são transformados em animais –, tinha tudo para agradar aos irmãos Coen, e Ethan e Joel morderam a isca. Bizarrice à parte, a seleção deste ano apostou no social mais que no glamour e equilibrou grandes nomes com novos talentos. Pode não ter sido a seleção ideal – franceses demais, latinos de menos –, mas, na falta de grandes filmes, mostrou muitos bons. Além do social, apontando para o pé no chão – na entrevista que deu ao Estado, Pierre Lescure disse que só pediu a Frémaux que evitasse o glamour fora de tempo e espaço –, os filmes falaram muito de morte. O pai do filme de Nemes tenta enterrar dignamente o filho morto nas câmaras de gás dos nazistas, o enfermeiro de Chronic trata de doentes terminais, os exilados de Sri Lasnka fazem tudo para sobreviver em Dheepan. Na França ainda traumatizada pelo ataque ao Charlie Hebdo, a seleção de Cannes, e a Palma, refletiram a crise.

ENTREVISTAS

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Jacques Audiard, Cineasta

Jacques Audiard chegou todo feliz na coletiva dos vencedores. Depois de várias tentativas, ele finalmente ganhou sua Palma de Ouro.

A vitória o surpreendeu? Foi uma boa surpresa. Já ganhei outros prêmios aqui, mas a Palma... O curioso é que, num determinado momento, quase desisti de fazer Dheepan.

E eu posso adivinhar por quê. Você não gosta de se repetir, e a história ficou parecida com a de Um Profeta. Foi isso?

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Exatamente. Toda a parte em que o personagem começa a desafiar a estrutura de poder dentro do condomínio me parecia déjà vu. Por isso me concentrei no tema da falsa família. Gosto dessa ideia de que, um homem tenha de criar uma falsa família e que, no limite, o falso termine se revelando verdadeiro.

Como foi trabalhar com Jesuthasan Antonythasan, que é mais conhecido como escritor?

Não só ele, mas Kalieaswari Srinivasan, que faz sua mulher, me foram sugeridos pela direção de elenco. Eles conheciam aquela realidade melhor que eu e me deram a veracidade para fazer de Dheepan o filme com que sonhei.

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Kiyoshi Kurosawa, Cineasta

Muitos filmes em Cannes abordaram o tema da morte. Outros trataram até da questão do espiritismo, como o de Kyioshi Kurosawa, Kishibi no Tabi/Rumo à Outra Margem, que venceu o prêmio de direção em Un Certain Regard.

Seu filme não se assemelha a histórias de fantasma que tenha visto. Por que quis fazê-lo?

A ideia era também fugir ao filme de gênero, daí a sua sensação. Fantasmas são tradicionais em grandes filmes japoneses de época. Eu queria abordar o assunto numa produção contemporânea, mas sem provocar sustos. O importante é usar os mortos para falar dos vivos e dissecar sentimentos.

Seu partido pode até desconcertar, mas o filme tem umas das grandes cenas desse festival, quando a garota morta volta para perdoar a irmã e dá aquela lição de piano...

É a cena que me é mais cara no filme. Rumo à Outra Margem baseia-se num livro, ao qual sou bastante fiel. Mas a cena não existe. É uma criação minha, da qual precisava para aprofundar os personagens e agir no inconsciente do público. Adaptar não é se prender à letra de um livro. Você precisa desenvolver sua gramática.

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