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'O Gigantesco Ímã' reflete sobre tudo, até os filmes

Isso se dá por meio do inventor popular Evangelista Ignácio de Oliveira

Por Luiz Carlos Merten
Atualização:

Há um Brasil desconhecido, à espera de ser descoberto e o cinema tem contribuído para isso. Em 2006, o curta O Som da Luz do Sertão chamou a atenção para um personagem pitoresco. Evangelista Ignácio de Oliveira teve direito a seus 15 minutos de fama. Foi parar até no programa de entrevista de Jô Soares como o cientista autodidata que, nos anos 1970, construiu uma asa-delta para voar do ponto mais alto da cidade em que nasceu – Serra Talhada, no interior de Pernambuco. Passaram-se 40 anos, Evangelista continuou com sua fama de cientista maluco. Nunca parou de ‘inventar’, com os reduzidos recursos que tinha à mão. Para dar conta dessa genialidade ‘primitiva’, a dupla de cineastas formada por Petrônio Lorena, que também é de Serra Talhada, e pelo carioca Tiago Scorza resolveu expandir o curta.

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Para dar conta da criatividade de Evangelista Ignácio de Oliveira, só um longa. O Gigantesco Ímã estreou na quinta, 31, em salas selecionadas de algumas capitais. Em São Paulo, está em cartaz em apenas um horário, no Caixa Belas Artes. Outro documentário resenhado na edição de sexta, 1º, pelo EstadoQuanto Tempo o Tempo Tem?, de Adriana L. Dutra e Walter Carvalho – está em situação um pouquinho menos precária, em exibição em dois horários no Espaço Itaú Frei Caneca. Pegando carona no segundo, que discute o tempo e suas implicações (econômicas, filosóficas, etc.) é bom ir logo dizendo que não é perda de tempo assistir aos dois.

O Gigantesco Ímã venceu os prêmios de trilha sonora e menção honrosa no 19.º Cine PE – Festival do Recife, no ano passado. O filme passou em outros foros nacionais – e foi melhor documentário no Festival de Florianópolis do Mercosul. Passou com êxito até no exterior, integrando a seleção da Muestra del Cine Documental de Bogotá. Em todos esses lugares, o público tem se encantado com Evangelista, que, sem nunca ter estudado formalmente – numa universidade, por exemplo –, é capaz de discorrer sobre os mais variados temas, como os cientistas e pensadores que discutem o tempo no filme de Adriana e Carvalho. Fenômenos físicos, químicos, astronomia, nada intimida o cientista autodidata de Serra Talhada.

Durante mais de dez anos, Lorena e Scorza compartilharam momentos significativos da vida de Evangelista Ignácio, que converteram nos dois filmes, o curta e o longa. Para suas invenções, ele se utiliza de sucata, reciclando máquinas e equipamentos eletrônicos descartados, com os quais constrói desde uma câmera de filmar até instrumentos óticos/astronômicos. Vale tudo – o objeto mais disparatado. Lâmpadas usadas e rádios obsoletos. Com simplicidade e engenho, Evangelista age, ele próprio, como o gigantesco ímã do título, a tudo e todos imantando com sua insaciável curiosidade. Dessa maneira, reescreve máximas que fizeram história no cinema brasileiro. Nos anos 1960, no cultuado O Bandido da Luz Vermelha, de Rogério Sganzerla, o lendário personagem interpretado por Paulo Villaça dizia frases como “Quem tem sapato não vai sobrar” e “Quando a gente não é o melhor, a gente esculhamba”. Evangelista não esculhamba porque sabe que é bom. Também não perde tempo – quanto tempo o tempo tem? Quanto vale? – lamentando a precariedade dos seus recursos. Seu segredo é sempre transformar o pouco que possui no todo que necessita.

Animados por um personagem, no fundo, tão emblemático, os diretores também fazem, com os recursos de que dispõem, um cinema encravado na realidade e criativo. Não seria digno de Evangelista, se não o fosse. É significativo que, no Recife como no Festival de Triunfo, O Gigantesco Ímã tenha sido premiado como melhor trilha. Petrônio Lorena faz parte de um coletivo musical – Petrônio e as Criaturas. Scorza, da dupla, é o que tem maior formação de cinema. O importante é que, assim como os dois se integram e completam, a trilha de O Gigantesco Ímã é uma soma de música e ruído. É ‘som’. O filme constrói sua voz da mesma forma como busca o movimento.

Um temperamento inquieto como o de Evangelista necessita desse movimento. O filme se movimenta com ele – na rua, atrás de equipamento, em casa/no laboratório, em pleno processo de criação. Só criar não basta. Um amigo de Evangelista diz uma coisa que pode passar batida. “A legislação brasileira não favorece inventores como ele (Evangelista). É formatada para favorecer os estrangeiros e dificultar as iniciativas locais.” Transfira essa frase para o cinema que Lorena e Scorza estão fazendo e você terá uma velha queixa de quem se dedica à atividade cinematográfica no Brasil. O mercado, no País – e aqui a conversa já avança um pouco –, é formatado para o produto estrangeiro, leia-se, Hollywood. O Gigantesco Ímã é sobre o jeito brasileiro – de ser e criar. Evangelista, Lorena, Scorza – Fernando Meirelles. Em 2002, diante de Cidade de Deus, o próprio Steven Spielberg quis saber de Meirelles como filmou as cena da galinha. Em Hollywood, teria custado milhões. Meirelles e seu fotógrafo, César Charlone, colocaram a câmera num cabo de vassoura e correram, enxotando a galinha. Uma coisa, a invenção de Meirelles, não tem nada a ver com outra, as invenções de Evangelista. Não tem? Tem tudo a ver. O negócio não é mais esculhambar, mas reinventar(se).  

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