Foram anos de preparativos e dois meses de filmagem. Todo esse esforço resulta num filme de menos de cem minutos. O Fantasma, que estréia amanhã, é incômodo e perturbador. Trata de homossexualismo, mas nada horroriza mais o diretor João Pedro Rodrigues do que a idéia de que seu filme venha a ser confinado no território da "estética gay". Há nessa definição uma cacofonia horrível. Para Rodrigues, o gueto é pior ainda. Ele não acredita que exista essa estética, assim como também não acredita que exista uma estética heterossexual. Existe só o cinema. Rodrigues esteve em São Paulo no início da semana, para participar do lançamento de seu filme que fez tanta sensação no Festival de Veneza do ano passado. Nem toda publicidade é boa, pensa Rodrigues. O escândalo que O Fantasma provocou no Lido afastou o público do que, para ele, é o mais importante. Ele pode até mostrar uma cena de sexo explícito (o sexo oral entre homens, filmado em detalhe), mas quer ir além do sensacionalismo. Muita gente captou a intenção. Revistas como Time e Film Comment consideraram O Fantasma um dos dez melhores filmes (a primeira) e um dos cinco (a segunda), no ano passado. Embora estreando no longa, Rodrigues não é um estreante em cinema. Seu curta Parabéns ganhou o Leão de Ouro da categoria em Veneza. Ele está com 34 anos. Desde os 30 vem trabalhando nesse projeto. Não o escreveu sozinho. O filme é produto da associação de quatro roteiristas. Desenvolveram as situações que gostariam de ver num filme. Depois, procuraram o personagem para costurá-las. Rodrigues optou pelo lixeiro. Durante quatro meses freqüentou o departamento que se encarrega da limpeza pública de Lisboa. E escolheu, um a um, os lugares que queria filmar. Muito portuguesamente, ele não diz lugares, mas sítios. Esses sítios são fundamentais. Noturnos, ermos, decadentes, criam na tela uma geografia dos sentimentos. Rodrigues conhecia-os em detalhes, sabia onde colocar a câmera, como mover os atores no espaço. Seu sonho seria fazer o filme sozinho, sem ajuda de ninguém, mas não dá. "O cinema não é como a pintura, onde o artista precisa só de tela e tintas; é preciso dinheiro, equipe, atores." O dinheiro, justamente. Ele só conseguiu fazer O Fantasma graças a uma mudança nas leis de apoio ao cinema de autor no país. É a mesma lei que beneficia Manoel de Oliveira, por exemplo. Ele gosta dos filmes antigos do mestre português. Não admira muito os recentes. O repórter observa que Oliveira, ultimamente, anda num ritmo binário - um filme bom e outro ruim. Ele descarta o binário, só vê filmes ruins. Acrescenta que, de maneira geral, o público português tem prestigiado mais a produção nacional, o filme dele, inclusive, mas o mercado de lá, como o daqui, é dominado pelo produto americano, que não é o seu preferido. Por que os lixeiros? "Porque são parte da paisagem urbana", diz o cineasta. Porque o lixo é aquilo que não serve para uma sociedade. Lidar com ele é colocar-se numa categoria inferior e marginalizada. "Os lixeiros são fantasmas que, na noite, percorrem rotas escondidas no labirinto da cidade; sua ligação é com o detrito, a sujeira", ele diz. É nesse quadro que se desenvolve a história de Sérgio, interpretado por Ricardo Meneses. Sérgio é assediado por uma colega, mas é homossexual. Sente desejo - por um homem - e esse desejo é o tema de Rodrigues. Seu filme "é uma ficção sobre a brutalidade do desejo e a revolta produzida pela rejeição", define o diretor. Rejeitado Sérgio veste o fato (a roupa) de fantasma e dá vazão à sua animalidade. Desde o início, quando se coloca no plano do cachorro, ele vive essa pulsão pelo lado animal, libertando-se dos grilhões da cultura repressora. O Fantasma é o contrário de um filme de Joseph Losey, o americano que se exilou na Europa, por causa do macarthismo. Rodrigues sabe de quem se trata, capta o sentido da observação do repórter. O cinema de Losey mostra a trajetória de personagens rumo à luz. O movimento de Rodrigues é oposto. Ele filma a trajetória de Sérgio rumo às sombras, à escuridão. "Ninguém vive sem amor", diz a chamada no cartaz. É que Rodrigues quer provar com sua história de desejo rejeitado. Ele trabalha no tempo, com planos-seqüências. Fragmenta sua narrativa. Tudo foi milimetricamente planejado no roteiro, até porque, como Hitchcock, ele acredita que filmar é passar o filme que já está pronto na cabeça do autor, pela câmera. Mesmo assim diz que uma filmagem pode ser surpreendente. Ricardo Meneses surpreendeu-o. Seu modelo foi o diretor francês Robert Bresson, não só na maneira de filmar, mas também na maneira de refletir sobre o mundo. O próprio tema do desamor é bressoniano. Sérgio não verbaliza seus sentimentos e isso condena-o à animalidade. Rodrigues ama não só o Bresson da França, mas também o Bresson da Ásia, Tsai Ming-liang. Tsai é obcecado pela água. Rodrigues, também. Sérgio banha-se, em busca de uma purificação impossível. Bebe a água da sarjeta. Rodrigues quer acreditar, como Bresson, que a incomunicabilidade é uma forma de comunicação. Mas seu filme é desesperado. "Meu filme não é um retrato dos gays, é o retrato de um personagem." Devem existir gays felizes, acredita. Acha que só há uma maneira de contar cada história. Procura a dele. Neste filme, era desse jeito. O próximo vai tratar também do desejo, agora centrado numa mulher. Rodrigues pode desconcertar, mas é um nome a considerar. Fantasma (Phantom). Drama. Direção de João Pedro Rodrigues. Duração: 90 minutos.