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O 21º Cine PE só lotou uma vez e foi na exibição de 'O Jardim das Aflições'

Festival já foi acusado de ceder a 'um discurso partidário alinhado à direita conservadora'

Por Luiz Carlos Merten e RECIFE
Atualização:

Nos seus mais de 20 anos de existência, o Cine PE começou pequeno, no Cine São Luiz, no centro do Recife, assumiu a vocação de ser um evento de massa e se transferiu para o Centro de Convenções de Olinda, transformado em cinema de quase 3 mil lugares.

Encolheu, voltou para o São Luiz. Na sua 21.ª edição, o Cine PE conseguiu lotar só uma vez, e foi com a exibição do filme responsável por toda a polêmica deste ano – O Jardim das Aflições.

Olavo de Carvalho. Filme sobre escritor, ensaísta e filósofo causou confusão no festival Foto: Lavra Filmes

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Na verdade, foram dois filmes polêmicos e ao apresentar Real – O Plano por Trás da História, de Rodrigo Bittencourt, fora de concurso, na abertura, dia 27, e no dia seguinte, inaugurando a competição, o longa de Josias Teófilo sobre o filósofo Olavo de Carvalho, o Cine PE foi acusado de ceder a “um discurso partidário alinhado à direita conservadora e a grupos que compactuaram e financiaram o golpe ao Estado democrático de direito ocorrido no Brasil em 2016”, conforme carta aberta de realizadores em 10 de maio. Formou-se o imbróglio.

Diretores retiraram seus filmes, o festival foi adiado e reprogramado com outra seleção – irregular, para se dizer o mínimo. Se o festival alinhou-se à direita – e sua diretora, Sandra Bertini, é veemente ao dizer que não, porque o festival celebra a diversidade sem pedir atestado ideológico de ninguém – não é menos verdade que os diretores ‘de esquerda’ também deram prova de autoritarismo, e censura. O festival encerra-se na noite desta segunda, 3. Há curiosidade pela premiação, já que o júri, integrado, entre outros, pelo documentarista Vladimir Carvalho, está longe de exibir um perfil reacionário. A questão toda está na oferta de filmes, que, dado o boicote, não foi a mais brilhante. Entre curtas e longas, porém, não faltaram títulos atraentes – e eles incrementaram os debates, que foram intensos.

Day Rodrigues, produtora e codiretora afrodescendente de Santos, trouxe um filme militante, Mulheres Negras – Projetos de Mundo, que coloca em xeque o discurso hegemônico da sociedade comandada por homens brancos e heterossexuais. É fortíssimo e se destacou, na competição nacional de curtas, com um belo trabalho do Paraná, Luiza, de Caio Baú, sobre uma garota especial que descobre sua sexualidade e os temores que isso provoca na família. Na mostra Pernambuco, também de curtas, houve Soberanos da Resistência, de Marcus Paiva, sobre os maracatus que, sem nenhum tipo de apoio, resistem como manifestações de rua em Olinda e nas ‘nações’, como são chamadas, as mulheres são poderosas.

Outros belos curtas, como O Ex-Mágico, de Olímpio Costa e Maurício Nunes, e Quando os Dias Eram Eternos, de Marcus Vinicius Vasconcelos, já integraram (e foram premiados) em outros festivais.

Longas. Na competição de longas, o mais ousado veio de Minas. Los Leones, de André Lage, documenta a vida de um casal que vive numa ilha do rio Tigre, na Argentina. Ela, Mariana, está doente e o diretor, com absoluta precisão, faz de seu filme um raro exercício de ocultamento. Como é possível interessar o espectador por personagens sobre os quais ele não sabe muita coisa, e que estão envolvidos numa situação que também não é nunca completamente esclarecida? E mais – Lage, munido de uma pequena câmera digital, praticamente fez o filme sozinho.

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Seu método, somado à ocultação, poderia ser chamado de antimétodo. Sendo seu filme um documentário – mesmo que nas bordas (da ficção) –, ele nunca dirigiu Mariana nem seu companheiro. Instalou-se na casa – pequena, e ainda por cima cheia de gatos e cachorros – e, sem nunca dar instruções à ‘pareja’, começou a filmar o que considerava importante.

Qual é a chance de um filme desse dar certo? O importante é que deu, e pode vir a ser paradigma. De um outro conceito de cinema? Nos créditos, André Lage agradece a Davi Pretto, o autor gaúcho de Castanha e Rifle, com o qual compartilha algo mais que conceitos estéticos. Há, nos dois, um fascínio por situações-limite e personagens à margem. Não é um cinema de mercado, mas como observação humana e social é muito rico. 

A confusão. E chegamos ao filme pivô de toda essa confusão no Cine PE. Você já deve ter lido por aí que o filme de Josias Teófilo, O Jardim das Aflições, não traduz bem as ideias de Olavo de Carvalho, misto de escritor, ensaísta e filósofo que virou expoente do pensamento conservador no País. Radicado nos EUA, ele escreve da ‘corte’, mas não é um cosmopolita como Paulo Francis. Talvez não seja nem tão brilhante, como frasista de efeito, mas diz o que sua plateia quer ouvir. E o filme expõe, sim, seu pensamento, com qual você pode concordar ou não.

Já que o título se refere à obra mais famosa de Olavo de Carvalho, Teófilo parte do seu isolamento – uma casa numa imensa área verde – para debater o conceito do jardim. Carvalho parte do de Epicuro, atravessa o do Éden e chega ao das Oliveiras. Critica a vida nas cidades como submissão a normas constituídas e busca no seu jardim uma vivência plena. Seu pensamento estrutura-se sobre a premissa de que é preciso conhecer a origem das próprias ideias. As dele, algumas pelo menos, o filme mostra que vêm do cinema.

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Para demonstrá-lo, Teófilo incorpora, entre outras, cenas de No Tempo das Diligências, o clássico de John Ford, e Ivan, o Terrível, de Sergei M. Eisenstein. Questão – o cinema formou o pensamento de Carvalho ou é ferramenta para ilustrá-lo? O que ele diz sobre o western está longe de ser irrelevante. Como frasista, Carvalho crava uma frase que agrada muito a seu público. Mostra sua biblioteca. Diz que leu tudo. Confiemos em sua palavra. Toda uma ala é dedicada só ao comunismo. “Se os comunistas tivessem lido tudo isso, deixariam de ser.” O público, no Cine São Luiz, aplaudiu com entusiasmo.

O alvo de Olavo de Carvalho é o petismo, com sua dominação ‘gramsciana’ do aparelho cultural. Mas ele também surpreende com sua interpretação do impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff. Diz que foi um “prêmio de consolação da elite governante. O povo estava contra o PT, a grande mídia e a roubalheira”, que, para ele, são a mesma coisa.

Sem conseguir acabar com nenhum, sejamos textuais, “você tira uma pessoa e deixa os outros no lugar. (…) Olha, te oferecemos a cabeça da Dilma...”. Tudo o que a elite não quer é ser chamada de golpista, e seu filósofo diz que é. O próprio Teófilo não deixa de fazer a crítica do personagem. Numa cena, Carvalho está sendo entrevistado (por Wagner Carelli) e, em contracampo, aparece ao fundo a plateia – a mulher, do lar, a família toda. O homem é um Narciso. Paulo Francis era muito mais irônico com sua persona no documentário que Nelson Hoineff lhe dedicou.

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