Ken Loach volta ao tema da luta de classes no filme 'Jimmy's Hall'

Novo longa externa ainda mais as lições de um diretor que beira os 80 anos sem perder o entusiasmo pela arte de fazer cinema. Confira

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Por Luiz Carlos Merten
Atualização:

Todo ano surgem na imprensa críticas ácidas à seleção do Festival de Cannes. Mais do mesmo, reclamam muitos críticos. Existem diretores que têm cadeira cativa na Croisette, o maior festival de cinema do mundo é parcimonioso em relação ao novo - exceto se o sujeito é canadense e chama-se Xavier Dolan. A seleção do ano passado, a última do então diretor-geral Gilles Jacob, foi particularmente defenestrada. Jacob e seu delegado artístico, Thierry Frémaux, defenderam-se - Cannes sempre privilegiou os grandes diretores. A imprensa de língua inglesa caiu matando. E quem foi que decretou que diretores como Mike Leigh e Ken Loach são grandes? Pausa para reflexão. Turner, mesmo tendo recebido o prêmio de interpretação masculina - para Timothy Spall -, é a prova, mais uma, de que Leigh não é grande coisa nenhuma e é até um mistério como suas caricaturas dos ingleses atraem tanto os críticos. Com Loach, a coisa é diferente. A maior crítica que se pode fazer a ele também é o maior elogio, e Jimmy’s Hall, que estreia nesta quinta, 6, é a prova irrefutável. Num mundo que escolheu o mercado, seu discurso de ‘esquerda’ parece anacrônico. Tudo o que Loach ainda defende - humanismo, solidariedade, socialismo democrático - está em baixa. Mas ele resiste, e com a vantagem de fazer bom (grande) cinema. “O mundo já pendeu à direita demais para que eu desista de minhas histórias”, disse ele em Cannes, no ano passado.

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A de Jimmy’s Hall é típica. O Jimmy do título, interpretado por Barry Ward, é um jovem líder comunista irlandês que volta a seu país natal depois de passar dez anos em Nova York. Solidário, libertário, Jimmy enfrenta os poderosos locais, o que inclui os dignatários católicos, que se opõem, como coisa do diabo, ao salão de danças que ele cria. É o ‘Hall’.  No salão de Jimmy, as pessoas dançam, mas também debatem, aprendem. Tudo isso é potencialmente explosivo, perigoso. Pode ser um anacronismo - a luta de classes como motor da História, com H -, mais um de Loach, mas também é uma daquelas histórias humanitárias de que só ele possui o segredo no cinema atual.

Preste atenção no que diz Cécile Mury, da revista francesa Telérama, sobre Jimmy’s Hall. “O novo filme de Ken Loach [DE KEN LOACH]não demonstra nenhum ranço, nenhum desencantamento. Não é um adeus, e sim um vigoroso manifesto político, típico de nosso humanista preferido - talvez um pouco pedagógico, mas sempre cativante, generoso, cheio de vida.” É essa vitalidade que mais atrai no próprio Loach. Seus filmes têm a cara dele. Seu sorriso, sua simpatia, sua generosidade. Mas, claro, essa é uma impressão subjetiva. Para muita gente, o cinema de Loach é maniqueísta, ultrapassado. O curioso é que, sendo, como é, um ácido crítico do mercado, Loach não deixa de se afirmar dentro dele. Seus filmes fazem sucesso de crítica e de público - um público de resistência, embora não seja impossível conciliar o humanismo de Loach com conceitos de alguns blockbusters -, o que tem permitido ao veterano diretor manter a regularidade de um filme por ano, quase todos os anos, e na relação custo/benefício, alguns belos êxitos. Loach sabe disso - “Já teria parado se meu discurso caísse no vazio. Mas a verdade é que em muitas partes encontro acolhida para as histórias que conto, e espero continuar contando. De qualquer maneira, já estou chegando aos 80 e um filme como Jimmy’s Hall exige demais em termos de atividade física, não apenas mental/intelectual. Ocorre que eu gosto de fazer filmes. Talvez diminua o ritmo, talvez faça documentários ou ficções num estilo mais documentário. A ideia da aposentadoria surgiu num momento difícil, quando eu duvidava que iria conseguir transpor os obstáculos que se desenhavam para Jimmy’s Hall. Mas é inevitável. Um dia vou ter de parar. A chama vai se extinguir.” Para Loach, embora a história que ele conta se passe na Irlanda, ela é universal. “Me atraiu muito essa ideia de um homem com uma energia tão grande que o espaço que ele cria vira uma área de multi-uso. O hall de Jimmy é um espaço para que muitas pessoas se expressem, e no qual ideias revolucionárias coexistem com dança, diversão, educação, namoro. Gostei dessa ideia de que a Igreja se alia aos reacionários e precisa ser combatida. O verdadeiro espírito do cristianismo muitas vezes não está na Igreja. Creio não estar dizendo nenhuma novidade. Falei aqui com uns chineses que levantaram o exemplo de Ai Weiwei. É um bom exemplo de artista que catalisa reações contrárias. Ele criou um estúdio para a expressão de outros artistas. O espaço virou um foco de dissidência e as autoridades chinesas intervieram.”Jimmy’s Hall passa-se na Irlanda, nos anos 1930. Como sempre, Loach e seu roteirista, Paul Laverty, pesquisaram a época, mas como diz Laverty - “Nos acusam de anacronismo, de possuir um discurso velho, mas se há uma coisa que nos preocupa é o aqui e agora. O passado interessa como ferramenta de conhecimento. O hall de Jimmy é sobre a possibilidade de aprender, de transpor limites e também sobre as forças que tentam impedir que isso ocorra com as pessoas. Os clérigos do filme são conservadores, reacionários. Veem perigo em toda parte. Clamam por repressão. Nosso cinema é atacado pela mídia estabelecida no Reino Unido. São eles, todos esses comentaristas que sabem tudo e não acertam nada, que pensam com a cabeça do mercado, os novos clérigos.” Laverty chega a dizer - “Querem nos fazer crer que a luta de classes se tornou obsoleta no mundo atual. Mas isso é só o que querem nos fazer crer. As relações entre patrões e empregados nunca foram tão conflituosas. Há uma defesa da liberdade individual como se fosse o bem supremo. É mais ou menos como dizer - você pode conseguir o que quer, mas é melhor que seja sozinho. Não é. A união é que faz a força. Basta comparar o protesto de um homem com um protesto coletivo. Qual terá mais força?” A pergunta inevitável - o marxismo, então, não está morto? “Claro que não”, Loach e Laverty bradam em coro. A política é sempre decisiva no cinema humanista de Loach, mas se há uma coisa de que ele não descuida é da forma do filme. “Sigo trabalhando da mesma forma. Nossos filmes são completamente escritos, mas tem sempre de haver um espaço para a criação do ator. O filme pode ser muito bem escrito, e, mesmo assim, ser arruinado por uma interpretação inadequada. Nosso objetivo (de Laverty e dele) é sempre comprometer o ator. Nosso naturalismo não é espontâneo, mas construído. Passa por leituras, improvisações. E assim chegamos à textura das cenas que imaginamos.” Do elenco ‘jovem’ participam atores e atrizes como Barry Ward, Simone Kirby e Andrew Scott. Todos possuem expressiva carreira na televisão e no teatro. “O entusiasmo de todos eles foi decisivo para o clima do filme, mas é sempre assim. Não conseguiria trabalhar com um elenco que não tivesse esse grau de entrega.”

PRESTE ATENÇÃO

A fala com força de manifesto

1. Discrição. O reencontro de Jimmy/Barry Ward com a mulher amada; a forma delicada como Ken Loach e o roteirista Paul Laverty armam o triângulo é um raro exemplo de emoção contida. 2. Veemência. O discurso da mãe de Jimmy, quando ela protesta contra a arbitrariedade da perseguição ao filho, tem a força e o valor de um manifesto. 3. Canto. A alma irlandesa transborda nas canções que agitam o ‘hall’. O gramofone, a orquestra, tudo contribui para o clima. 4. Dança. Num filme tão pudico, no qual coisas íntimas e essenciais permanecem caladas, o breve toque nas cenas dançadas adquire um relevo especial pelo que revela dos personagens.KEN LOACH - CINEASTAFilho de operários, nasceu em 1936, na Inglaterra, e estreou em 1968 com A Lágrima Secreta. Diversas vezes premiado em Cannes, ganhou a Palma de Ouro por Ventos da Liberdade, em 2006.  

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