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'Hiroshima, Meu Amor' promove o mistério em primeira instância

O tempo passa e o clássico de Resnais e Duras permanece um raro experimento literário em filme

Por Luiz Carlos Merten
Atualização:

Em 27 de janeiro, aos 89 anos, morreu Emmanuelle Riva. Antes dela se foram os compositores Giovanni Fusco (em 1968) e Georges Delerue (em 1992), o ator Eiji Okada (em 1995), a escritora Marguerite Duras (em 1996), os diretores de fotografia Michio Takahashi (em 1965) e Sacha Vierny (em 2001), o montador Henri Colpi (em 2006) e o diretor Alain Resnais (em 2014). Em 1958, todos esses talentos que agora pertencem à eternidade se uniram para realizar uma obra-prima. Hiroshima, Meu Amor reestreou na quinta, 9, em versão restaurada. É um clássico da ligação cinema/ literatura. Não uma adaptação de obra literária, mas uma obra literária feita para o cinema.

Ao longo de toda a década de 1950, Resnais estabelecera sua reputação como diretor de documentários e curtas de arte. E então os produtores lhe encomendaram um filme sobre (e contra) a bomba atômica. Resnais começou a desenvolver o projeto. Sentiu que estava repetindo seu Noite e Neblina, de 1956, sobre os campos de extermínio nazistas. À roteirista Duras, que queria escrever para cinema, pediu que fizesse literatura. E surgiu aquele recitativo. Um dueto de vozes, ritmadas, hipnóticas, que repetem o mesmo mantra. “Sim, eu vi tudo em Hiroshima”, “Não, você não viu nada em Hiroshima.” A mulher, uma atriz de cinema, repete que tudo viu. O homem, um arquiteto que participou da reconstrução da cidade destruída pela bomba, insiste que ela nada viu. A experiência da bomba é atroz demais para ser visualizada. Mesmo assim, Resnais mostra. O ardor dos amantes calcinados por cinzas, os corpos das vítimas, deformados.

Emmanuelle e Okada. Dueto/duelo de vozes: o casal de amantes em histórias cruzadas Foto: Zeta Filmes

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A mulher diz algo perturbador - “Se podemos fazer filmes para vender sabão, por que não para vender a paz?” E ela também repete, várias vezes: “Tu me tues/tu me fais du bien.” Você me mata, você me faz bem. Aos poucos, a história da francesa e do japonês é substituída por outra história. Na guerra, na França, essa mulher teve um romance proibido com um soldado alemão. Ele foi morto, ela teve a cabeça raspada, viveu escondida num porão - louca de amor. Folle d’amour à Nevers. O japonês a estimula a falar. Memória e esquecimento, memória contra o esquecimento. “Déforme me moi”, deforma-me. O que representa esse pedido que brota como um grito? É o eterno retorno. Só assim ela acredita que poderá reencontrar/verbalizar o sentido de suas histórias de amor proibido.

E o japonês, como um psicanalista que tenta retirar da paciente o fluxo de consciência, explica-se: “Foi lá, em Nevers, que eu tenho a impressão de que quase te perdi”. Ele, o japonês, representa uma rara consciência - da vida na era atômica. Mas é a mulher que fascina. Nenhum dos personagens têm nome. Identificam-se, no final, pelos nomes das cidades - Nevers, Hiroshima. O mistério de um filme que não consegue nunca ser completamente decifrado. Que se renova, e perpetua, a cada revisão. Como dizia o cinéfilo François Truffaut: “A idade cai bem nos filmes que o tempo respeita”.

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