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Em 'Pela Janela', uma viagem muda a vida de uma mulher madura e solitária

Influenciado pelo diretor Ozu, longa é muito simples e sutil

Por Luiz Carlos Merten
Atualização:

É uma pena que o júri de Gramado não tenha percebido a qualidade de Pela Janela, deixando de outorgar um só Kikito que fosse - o mais adequado seria o de melhor atriz para Magali Biff - e preferindo canalizar a maioria dos prêmios para Como Nossos Pais.+++ Mostra de Cinema de SP exibe 'Pela Janela', sensível retrato de mulher, e o 'Happy End' de Haneke O filme de Laís Bodanzky é bom e compartilha com o da estreante (em longa) Caroline Leone essa disposição de falar sobre a mulher, e sua luta para se afirmar no mundo. A sutileza é que Como Nossos Pais fala de mulheres num quadro específico - classe média intelectual, alguma proximidade do poder - e o de Carol Leone resgata uma figura que não tem merecido tanta atenção no cinema brasileiro. Pela Janela, que estreia nesta quinta-feira, dia 18, é sobre uma operária, Rosália/Magali Biff, e isso faz toda a diferença.

Pé na estrada. Magali Biff Cacá Amaral, os irmãos Rosália e José Foto: Dezenove Som e Imagem

+++ Gramado 2017. 'Pela Janela', a sutileza que diz tudo Nós, o público, somos apresentados a Rosália por meio de sua rotina. Os gestos repetidos na fábrica, onde é responsável por uma linha de montagem, e depois, no duplo expediente, o da casa, onde ela cozinha, lava roupa, cuida do irmão e, para relaxar, borda. Rosália é uma mulher madura, trabalha muito com as mãos. E, de repente, ela perde o emprego, o trabalho que lhe dá identidade.  “O filme é sobre isso. A gente ouve muito que o trabalho dignifica, e é verdade. Queria uma mulher não muito brilhante, mas eficiente, dedicada, para quem o trabalho é tudo. A privação do trabalho a joga para baixo, mas não é o fim de tudo”, reflete a diretora. Na ficção de Pela Janela, Rosália fica tão abalada que o irmão, que tem de partir numa viagem também de trabalho - é motorista -, sente que não pode deixá-la sozinha. Na estrada, Rosália começa apática. Nem percebe o mundo que desfila pela janela do carro. Mas algo se passa, e a vida vem.+++ Laís Bodanzky assume o discurso feminista em 'Como Nossos Pais', seu longa vencedor de Gramado “O filme começou a nascer numa viagem que fiz, de ônibus. Conheci essa senhora que havia feito uma viagem que mudou a vida dela. Aquilo ficou anos comigo, porque era uma coisa pequena, mas muito forte, muito densa. Quando parti para o longa, vi que era a história que eu queria contar”, lembra ainda a diretora Caroline Leone.+++ 'Como nossos Pais' é o grande vencedor do Festival de Gramado Convenhamos que não é uma trama 100% original. Sua força vem da simplicidade, e de um detalhe que salta aos olhos desde a primeira cena. Na fábrica, a primeira imagem mostra Rosália refletida na água, que também vai ser personagem. A força da água. Não, a forma, para pegar carona num filme que estará no Oscar. José, o irmão motorista de Rosália, tem uma missão em Pela Janela. Deve levar um carro a Buenos Aires, e depois voltar de ônibus para o Brasil. Sentindo que a irmã não está bem, ele a leva. Os dois, na estrada. Rosália a seu lado, silenciosa, vendo o mundo com indiferença, pela janela. Fazem uma parada, ela vai ao banheiro. Tem problema com a torneira, a água parece que não vem. E aí, na fronteira com a Argentina, eles chegam às cataratas. Iguaçu, aquela parte de água. A água que - essa é a impressão - lava a alma de Rosália, impulsionando-a a retomar o caminho da vida. A cena da catarata é grandiosa, mas na sua essência é simples. A água como personagem de Pela Janela. O que diz a diretora e roteirista Caroline Leone? “A água é decisiva no filme porque, como a Rosália é uma operária numa fábrica, a água lubrifica as existência dela como lubrifica a engrenagem no trabalho. Não é só nas cataratas. A água está presente no filme todo, e muitas vezes em gestos pequenos. Lavar roupa, tomar banho, preparar o alimento.” A água, no limite, extravasa do peito e verte pelo olho, como lágrima. Nada muito complicado, tudo muito simples e direto, mas o filme é exigente porque clama por um espectador sensível e atento a essas sutilezas. Yasujiro Ozu, arrisca o repórter? “Totalmente”, diz Carol Leone. “Gosto muito do cinema dele. É uma referência permanente para mim. Enquanto escrevia e, depois, filmava, era como se tivesse um Ozu no meu ouvido dizendo ‘Menos, menos’. Compreendo que é um risco, porque o filme é cheio de buracos negros que o espectador tem de preencher, e não resolve nada. No final, a vida de Rosália não está resolvida. Mas é um recomeço, e isso já é bastante.” Por falar em risco, Carol Leone admite que também foi, e grande, dar o papel de protagonistas absoluta a Magali Biff, que está presente em todas as cenas. Magali é uma grande atriz de teatro, em montagens de Gabriel Villela e Felipe Hirsch. Tem feito pequenos papéis no cinema, nunca uma protagonista, mas Carol nunca duvidou que ela seria perfeita. E Magali? “Foi um susto fazer um papel tão grande e absorvente, mas entrei tranquila porque como atriz, e muitas vezes de montagens experimentais, também me considero uma operária.” Houve preparação? “Sim, mas não no sentido usual. A Carol escreveu um roteiro muito preciso, mas o filme não tem muitos diálogos. Então, em vez de leituras, ela nos propunha jogos, que a gente recriasse a vida desses personagens, quem eles eram, como eram.” Foi enriquecedor, acrescenta Cacá Amaral, que faz José, o irmão. “Só para você ver. A Carol pediu que a gente imaginasse a perda da virgindade da Rosália, e como teria sido a primeira noite do Zé. Eu também já toquei piano, mas ela queria outro instrumento, e tive de me exercitar no violão, como o Zé, ao tocar, também parece que ainda está se exercitando”, conta. A cena das cataratas teve de ser filmada num único dia. “E a Carol, que fez todo um planejamento, não nos levou lá antes. Quando a gente vem avançando pela mata e, depois, na passarela, acho que o que está na tela não é só a reação dos personagens, mas também a nossa, do Zé e eu, porque aquilo é gigante, apequena a gente. E, ao mesmo tempo, é bom, porque ajuda a recolocar as coisas em perspectiva. O mundo é tão maior que a gente passa a encarar os problemas de outra forma, talvez menos dramática.” Carol filmou muito, e o diretor de fotografia você sabe quem era? O pai dela, Cláudio Leone. “Acho que é bom ter essa relação de confiança entre pai e filha. A gente briga muito, porque sou minha câmera. Se sei o quadro que quero, por que vou delegar a outro? Discutimos, e também é bom para a relação familiar. Nada de ressentimento. A gente termina por se abrir mais, conhecer mais”, avalia a diretora. Ela explica seu método. “Filmo roteiros detalhados e depois vou cortando até chegar ao nervo. A questão é sempre mostrar menos, mas dentro de um princípio - até onde dá para tirar coisas sem deixar incompreensível nem com a impressão de falho?” É interessante porque em Cannes, em maio passado, falando de seu novo filme, Happy End, Michael Haneke disse que também é isso que persegue. Haneke, Ozu... “Gosto mais do Ozu”, diz Carol Leone. Só falta a câmera baixa, brinca o repórter. “Que nada, usei bastante nos curtas”, conclui a diretora de Pela Janela.  

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