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Diretor Patricio Guzmán vem ao Brasil para retrospectiva de sua obra

Cineasta filmou o início e o fim do governo de Salvador Allende

Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Por Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

Patricio Guzmán filmou a ascensão e a queda do governo Allende na estupenda trilogia A Batalha do Chile. Com o golpe de 1973, Guzmán teve de exilar-se e, de fora, continuou a acompanhar os acontecimentos do seu país. Inclusive a redemocratização e o rescaldo dos crimes da ditadura, registrados em filmes tão duros como poéticos que são Nostalgia da Luz e O Botão de Pérola. Guzmán vem ao Brasil para a megamostra Paixão de Memória, já em cartaz, organizada pelo Instituto Vladimir Herzog e o cine Caixa Belas Artes, com curadoria de Luis Ludmer e Laura Faerman.

A mostra de filmes, reunindo 12 longas do diretor, segue até dia 18, fechando com duas obras menos conhecidas, Em Nome de Deus e A Cruz no Sul. Mas a presença de Guzmán em São Paulo não se resume à retrospectiva de seus filmes principais. Dará um ambicioso curso de dez aulas, de três horas cada uma, que se estende até dia 20. Além disso, haverá três encontros de Guzmán com o público dias 9, 11 e 16 – quando será lançada a edição brasileira do seu livro Filmar o Que Não se Vê (Editora Sesc). Após o autógrafo, terá lugar a conversa com o público, no Cinesesc. A programação é intensa. Para não se perder, consulte o site paixaodememoria.org.br.

Patricio Guzmán: fascínio pela ciência, horror pela ditadura Foto: REUTERS/Stefanie Loos

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A obra de Guzmán é potente, consagrada e original. Atingiu nível altíssimo de elaboração estética no trabalho com material de explosiv relevância histórica e política. Para se ter ideia, é o único cineasta latino-americano a ter dois títulos entre os “5o maiores documentários de todos os tempos”, lista organizada pelo British Film Institute a partir de pesquisa com diretores e críticos de todo o mundo. São, Batalha do Chile e Nostalgia da Luz, sem dúvida seus dois filmes mais logrados.

Tal excelência faz supor um artista muito meditativo e profundo, homem culto e explorador consciente de novas técnicas cinematográficas. Tudo verdade. Mas, em seu livro Filmar o Que Não se Vê, Guzmán admite que o gênero documental é muito acidentado, por demais sujeito a acasos e interferências do real para caber em esquemas teóricos muito rígidos. Não que esses não existam ou sejam pouco importantes. Mas não podem se sobrepor às exigências do real – urgentes, caóticas, às vezes pungentes e atrozes. Há que estar aberto a tudo isso.

Sua história de vida é exemplo dessa flexibilidade. Morava em Madri quando Allende foi eleito pela Unidade Popular em 1970. Não pensou muito para deixar tudo para trás e voltar ao Chile para documentar esse momento histórico precioso. Pensou em registrar uma revolução pacífica e vitoriosa, mas viu muito mais que isso. Testemunhou a solidariedade popular com o governo e também as dificuldades e o boicote imposto por parcelas importantes da sociedade. Era época da Guerra Fria e os Estados Unidos apoiaram a oposição para desestabilizar o regime. Viu a resistência popular minada, a queda final do governo, a morte do presidente e o Palácio de la Moneda incendiado. Da euforia tornada tragédia nasceu Batalha do Chile, preciosas 4h32 de um clássico do cinema político.

'Batalha do Chile': resistência popular e derrota política Foto: Library of Congress

Há um dado curioso na trajetória de Guzmán. Em movimento único, ele alcança a síntese do seco realismo histórico com uma visão mais totalizante, cósmica, que leva seus espectadores a experimentar uma espécie de epifania. Uma iluminação que põe lado a lado o minúsculo e o imenso, o prosaico e o poético, o sórdido e o sublime.

Por exemplo, em Nostalgia da Luz, parte de um velho telescópio para falar de sua admiração pela astronomia. Isso o leva ao deserto de Atacama, onde a pureza do céu permite a melhor observação das estrelas. No entanto, nesse mesmo deserto, os criminosos da ditadura fizeram desaparecer os corpos de suas vítimas. Em O Botão de Pérola, fala da natureza encantatória da água – dos rios, do litoral imenso, dos picos gelados da cordilheira. Passa ao genocídio dos indígenas pelos colonizadores. Os indígenas eram homens das águas e pelas águas chegaram os espanhóis. Acrescentando mais um elo à corrente, encontra o tal “botão de pérola”, vestígio ínfimo dos mais hediondos crimes da ditadura Pinochet.

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Um filme, Meu Julio Verne, nos ajuda a entender melhor a abrangência de visão do diretor. Nele, Guzmán conta seu fascínio pelo escritor francês. De como o autor de Vinte Mil Léguas Submarinas despertou desde criança seu gosto pela aventura e pela ciência. O encanto pelo Cosmo e o pesadelo da História. Desses contrastes – e de um talento sem par – nasce essa obra tão intensa, reflexiva, cheia de beleza e dor.

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