"Desmundo" expõe a cara feminina da colonização

Falado em português arcaico (e com legendas), filme de Alain Fresnot que estréia hoje conta a história de uma órfã portuguesa trazida ao Brasil Colônia, do século 16, para se casar com um fidalgo

PUBLICIDADE

Por Agencia Estado
Atualização:

Tem sido um tema recorrente do cinema brasileiro recente. Em filmes como Cidade de Deus, de Fernando Meirelles, e O Invasor, de Beto Brant, na obra-prima da atual safra da produção nacional - o extraordinário Narradores de Javé, de Eliane Caffé, cuja consagração no Recife foi desautorizada pelo bando de incompetentes que formou o júri no Cine Ceará -, a questão da língua faz-se presente com maior ou menor felicidade, não importa. Para retratar o Brasil dos excluídos, dos marginalizados, para pôr na tela a relação do centro com a periferia, os diretores se preocupam em criar diálogos que soem verdadeiros para o espectador. E, nessa busca de uma linguagem verbal, talvez esteja embutida, metaforicamente, outra busca - a de uma linguagem para o próprio cinema brasileiro, para que ele seja, realmente, a expressão cultural do País. É um tema que esteve em debate esta semana num seminário realizado no Centro Cultural Banco do Brasil, no Rio (leia mais). Está em Desmundo, o filme de Alain Fresnot que estréia hoje em São Paulo (capital e interior), no Rio e em Brasília. Não chega a ser um arrasa-quarteirão, como Carandiru, que estreou em mais de 200 salas e já bateu o recorde de público do cinema brasileiro desde a retomada da produção no começo dos anos 1990, com 3,9 milhões de espectadores. Desmundo sai com 41 cópias, o que pode ser considerado um número bom. O próprio filme é forte, é belo e rigoroso, qualidades raras em qualquer cinematografia, nos tempos atuais. Talvez não seja um programa fácil, para quem só quer entrar no cinema como um pretexto para comer pipoca e tomar refrigerante enquanto olha alguma coisa que se mexe na tela. Desmundo baseia-se no livro de Ana Miranda sobre o lado feminino da colonização brasileira. E, se o livro é de Ana Miranda - e você conhece a escritora cearense que foi atriz de Nelson Pereira dos Santos em Como Era Gostoso o Meu Francês -, sabe que a linguagem tem mesmo de ser importante. Mais de um crítico já disse que a palavra é a protagonista da literatura de Ana Miranda. Com suas personagens históricas, em livros como O Boca do Inferno, O Retrato do Rei e Desmundo, ela se preocupa sempre em aprimorar ou discutir a palavra. Essa preocupação está embutida em Desmundo, que vê o mundo pelos olhos de Oribela, a órfã portuguesa trazida ao Brasil Colônia, no século 16, para casar-se com um fidalgo português que possui um engenho no interior, desta maneira, contribuindo para o aprimoramento da raça. A história interessou ao diretor Fresnot porque ele, que chegou ao País ainda criança, descendente de judeus europeus, identificou-se com essa heroína numa terra estranha, com seus costumes bárbaros. E também porque o fascinou a pesquisa de Ana Miranda no livro, que é trazer para o presente o linguajar do século 16. Se você fixar o ouvido e prestar atenção, vai se acostumar a esse português arcaico, mas, para facilitar, o filme passa com legendas, o que não deixa de produzir estranhamento. Um filme brasileiro com legendas! É assim que bate na tela a história de Oribela. É trazida de Portugal para casar-se com um certo Francisco de Albuquerque, homem rude cujo comportamento autoritário e possessivo, dispondo dela como se fosse uma coisa, assusta a garota. Uma nota da produção de Desmundo diz que odeiam-se com amor. Ela é frágil e forte e essa ambivalência seduz o aventureiro Ximeno Dias. Oribela corresponde e forma-se o triângulo de trágicas conseqüências. Talvez seja uma trama muito tradicional - história de amor a três, de possessão e adultério -, mas não parece, do jeito como é desenvolvida pelo diretor, que também é roteirista. É o melhor filme de Fresnot, que já dirigiu Trem Fantasma, Lua Cheia e Ed Mort. Há aqui um rigor cênico e dramático que não havia nos outros filmes, embora o cineasta jure que ele também esteja na história de detetive adaptada de Luis Fernando Verissimo, só que em Ed Mort não aparece tanto pela própria natureza mais leve do relato. A preocupação com o realismo de cena levou o diretor, que também é produtor - produziu O Castelo Rá-Tim-Bum no cinema - a reconstruir, com exatidão de detalhes, esse Brasil colonial. Isso encareceu o filme,. mas os R$ 4,5 milhões, que Desmundo custou, estão integralmente na tela. Ainda em nome da autenticidade, Fresnot assumiu a pesquisa de Ana Miranda e "traduziu" para o português arcaico o roteiro que havia escrito em português coloquial. Isso exigiu todo um trabalho de preparação dos atores e eles estão todos ótimos. Osmar Prado, grande nome da TV, faz o que ele próprio considera sua estréia em filmes, embora já tenha aparecido em diversos "que não aconteceram", como diz. A linda Simone Spoladore faz Oribela, Caco Ciocler cria Ximeno e o filme ainda traz outros nomes importantes, como os de Berta Zemel, Beatriz Segall e Débora Olivieri. Fresnot não poupa elogios ao seu elenco. Sabe que o cinema começa e se dilata na epiderme dos atores. Os de Desmundo vivem com paixão a história que ele conta.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.