Cinema, a verdadeira praia de Agnès Varda

Diretora que ajudou a fundar a nouvelle vague recebe prêmio em Locarno

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Por Flavia Guerra/ Locarno
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“Eu sou como todos. Sou complexa.” E assim a cineasta Agnès Varda definiu sua caleidoscópica personalidade durante conversa com o público no Festival de Locarno, que se encerra neste domingo, 17, na Suíça. Em uma das noites mais chuvosas da semana, o documentário autobiográfico Les Plages de Agnès (As Praias de Agnès), que Varda dirigiu e faz uma arqueologia de sua vida e carreira, da infância na Bélgica em meio aos pescadores até a vivência em Los Angeles ao lado do marido Jacques Demy (1931-1990), passando por sua luta pelos direitos das mulheres nos anos 1960.

O longa foi exibido na imensa tela da Piazza Grande sob uma insistente chuva fina. Mais insistente foi o público, que assistiu ao longa até o fim, disposto a entender melhor quem era aquela senhora pequena, mas cheia de energia, que pouco antes tinha subido ao palco para receber um prêmio pela carreira, o Leopardo de Ouro. “Recebi um Cão, nas Canárias, um Leão, em Veneza, um Urso, em Berlim. E para completar meu zoológico, ganho um leopardo. Obrigada!” Em seguida, ela tirou um macacão de oncinha da sacola, vestiu e fez a dança do leopardo. “Achei que tinha que estar vestida a caráter”, brincou.

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Varda, aos 86 anos, permite-se a originalidade e a sinceridade, qualidades que sempre a destacaram e ainda hoje desconcertam e encantam os mais protocolares. Cineasta genial que, ao lado de diretores como François Truffaut e Jean-Luc Godard e Demy, ajudaram a construir a nouvelle vague, é também uma das mulheres mais interessantes de sua época. Não bastam adjetivos para esta belga de origem grega que já rodou o mundo filmando, exibindo seus filmes, fotografando e, mais do que tudo, criando. “Sou inquieta. Trabalhei por anos pacientemente esperando estar aqui. E tomara que eu não esteja morta, porque é um sonho estar aqui na Piazza Grande”, declarou ela, arrancando muitos risos do público.

Ela, que não abre mão de seu cabelo ‘capacete’ branco e roxo, diz que é preciso brincar e ser sincero. “Vocês me dão um leopardo de honra. Mas detesto as palavras honra e mérito. Não correspondem ao trabalho de um cineasta. É como se eu estivesse à parte dos outros. Prefiro a palavra reconhecimento do meu trabalho, como se eu fosse, o que sou, como todos os cineastas, como a gente verdadeira que eu sempre filmei. Mais do que leopardo de honra, eu o tomo como leopardo de amizade, de reconhecimento do meu trabalho, de compartilhar o cinema.”

Compartilhar sua história e sua ideia de mundo tem sido o grande prazer da diretora, que em Locarno conversou abertamente sobre diversos assuntos. Inclusive sobre ser chamada de ‘diretora mulher’. “Não gosto quando me rotulam assim. Não sou uma ‘diretora mulher e feminista’. Sou mulher. Sou feminista, sim. Lutei muito pelos direitos das mulheres e isso está no Le Plages. Mas meu cinema é experimental. E não necessariamente feminista”, declarou ela ao Estado.

No entanto, contou que gosta de ir aos cinemas de Paris, onde vive, para conferir quem vai assistir a seus filmes e descobriu ser mais vista por mulheres. “Sento no fundo da sala e presto atenção. Há, em geral, mais mulheres. Gosto de observar as pessoas”, revelou ela, que justamente antes de filmar ficção, dedicou-se apaixonadamente aos documentários. “Meu primeiro filme de ficção (La Pointe Court), que tem mais de 60 anos, rodei em Sète (França), onde minha família se refugiou durante a guerra. Quis filmar uma história, mas também os pescadores, a vida das pessoas com quem cresci”, relatou ela, que voltou muitas vezes a Sète para rodar outros filmes e mostrar o resultado aos moradores que tanto a ajudaram. “Vi vários deles crescerem, outros morrerem... É incrível como o cinema pode retratar o tempo. Os que filmei são parte da minha vida. Como documentarista, entendi que é impossível conhecer as pessoas e abandoná-las.”

Atualmente, ela se dedica à conservação de seus filmes, às artes plásticas, área que ela vem conquistando respeito anos após ano, e, como sempre, não faz planos em demasia. “Primeiro porque estou velha, segundo porque nunca gostei de planejar muito. Eu, por exemplo, já fiquei dois anos sem filmar porque não tinha ideia”, declara. “Estou trabalhando em novos projetos, mas por ora não falo deles. Espero que as coisas aconteçam. Enquanto isso, faço outras coisas. Hoje em dia, as pessoas se obrigam a produzir o tempo todo. Queremos controlar tudo. É preciso fugir disso. Não falo de inspiração, mas sim de manter uma conexão consigo mesmo.”

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Análise por Luiz Zanin Oricchio

Em seu documentário As Praias de Agnès (2008), a diretora belgo-francesa Agnès Varda traça um panorama real (e imaginário) da sua trajetória. Tanto de vida como cinematográfico. Mesmo porque, no artista, as duas dimensões se confundem. No filme (lançado em DVD pelo Instituto Moreira Salles), Varda fala da influência das praias e do mar em sua vida. Mas conta também como passou da fotografia ao cinema, como foi o relacionamento com o marido, o também cineasta Jacques Demy, e quais foram suas relações com a nouvelle vague. É um belo testemunho de vida livre e criativa.

Agnès pode ser considerada, na verdade, precursora da nouvelle vague - o movimento cinematográfico que revolucionaria o cinema e eclode no fim dos anos 1950, virada para os 1960. Mas já em 1955, Agnès realizaria La Pointe Courte, seu filme de estreia e já todo construído em “espírito” nouvelle vague. Fala de um homem que volta por alguns dias à sua cidadezinha natal e lá se reencontra sua mulher. Todo o ritmo do cotidiano do vilarejo impregna a trama, mesclando ficção ao documentário.

Essa busca da grandeza que existe nas vidas “menores”, ou mesmo nos lapsos de tempo reduzidos que podem resumir uma vida, a levam a uma brilhante ficção como Cléo das 5 às 7. O que significam essas cifras? Simplesmente o tempo que uma cantora belíssima terá de esperar para receber o resultado de exames que dirão se ela está mortalmente doente ou não.

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A vida errante de uma jovem compõe a trama de Sem Teto Nem Lei (1985), história pós-era hippie, mas ainda impregnada da dor daqueles que buscam um espaço de liberdade numa sociedade controladora. Vidas pequenas, muitas vezes às voltas com circunstâncias que não podem dominar, como a doença, a vontade de liberação, ou mesmo a imposição dos próprios desejos. E sim, a dor da perda, que não pode ser apagada, mas encontra alívio quando tratada sob a forma de arte. Assim é que, como parte do luto pela perda do marido, Agnès lhe dedica nada menos que três filmes: Jacquot de Nantes, Des Demoiselles Ont Eu 25 Ans e L’Univers de Jacques Demy. O primeiro, em especial, é comovente em seus detalhes. Por exemplo, ela registra Demy, já muito doente e próximo da morte, feliz com um pulôver que ganha de presente da esposa. Ele o veste, olha-se no espelho e agradece. Um pequeno gesto de amor.

Pequenos gestos, aliás, pequenas coisas, objetos recolhidos, fotos esparsas, imagens perdidas que podem compor todo um painel social, ou todo um perfil humano - eis aí o universo de Varda. O cineasta é um colecionador de imagens, como ela afirma em um dos seus mais belos documentários, Les Glaneurs e la Glaneuse (2000). Como traduzir glaneur? É um catador, aquele que recolhe qualquer coisa que possa lhe servir para algum propósito, um objeto quebrado, um resto, a que ninguém mais dá importância. No filme, ela se compara a esses colecionadores maníacos, capazes de dar utilidade aos restos a que ninguém dá mais importância. Assim é o cineasta. Transforma resto em arte, em grande arte. Pelo menos assim é esta cineasta, alguém que se ocupa das pequenas coisas e das pessoas comuns e as torna igualmente grandes.

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