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Brilhante e polêmico, ‘Aquarius’ é um elogio à resistência

De Kleber Mendonça Filho, filme faz retrato do Brasil em sua complexidade; estreia é nesta quinta-feira, 1º

Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Por Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

A princípio, Aquarius vivia no remanso das boas expectativas. Aguardado segundo filme de um diretor que fizera sucesso com o primeiro, O Som ao Redor, Aquarius ainda recebera a bênção suprema do convite para a mostra principal do Festival de Cannes, o mais famoso do mundo. Foi lá, na Riviera Francesa, que as águas começaram a ficar mais turbulentas quando a equipe do longa resolveu fazer um protesto contra o impeachment no Brasil.

Nesse momento, as águas se dividiram. Quem contestava o governo provisório e o processo de impeachment alinhou-­se automaticamente ao longa. Quem sonhava ver a petista destituída, cerrou fileiras contra o filme e, em muitos casos, contra a classe artística. Para resumir: o filme entrou no buraco negro da fratura ideológica brasileira, no qual nuances são abolidas, argumentos não são ouvidos e a inteligência despenca a níveis abissais. 

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Dois fatos contribuíram para politizar a trajetória de Aquarius, que estreia nesta quinta, 1.º de setembro. Um, a presença de um desafeto do diretor Kleber Mendonça Filho, o crítico Marcos Petruccelli, na comissão escolhida pelo MinC para selecionar o longa nacional candidato a uma vaga no Oscar. Kléber manifestou-se. Diretores como Gabriel Mascaro (Boi Neon), Anna Muylaert (Mãe Só Há Uma) e Aly Muritiba (Para Minha Amada Morta) retiraram-se do concurso, seja por solidariedade a Kleber, seja por não reconhecerem a legitimidade da comissão. Dois jurados – o cineasta Guilherme Fiuza e a atriz Ingra Liberato – também deixaram o grupo. Foram substituídos por Bruno Barreto e Carla Camurati. 

Ao mesmo tempo, outro fato jogava gasolina na fogueira, quando o Ministério da Justiça divulgou a classificação etária de Aquarius como impróprio para menores de 18 anos, considerada excessiva pela produção do filme. Deve-se lembrar que a classificação para maiores de idade dificulta bastante a distribuição de um filme no mercado. 

Quis o destino que Aquarius chegasse às salas de cinema um dia após o desfecho do impeachment de Dilma. Será prejudicado pela polêmica ou pode até mesmo dela se beneficiar? Saberemos a resposta a partir desta quinta-feira, 1º. 

No entanto, em meio a todo esse imbróglio, há o filme, que deve ser pensado com autonomia em relação à conjuntura política imediata, embora nenhuma obra esteja acima ou ao lado das contingências históricas em que é feita e realizada. 

Aquarius adota um ritmo próprio – atento a atalhos narrativos, digressões e nuances – para contar a história de Clara. E o faz em dois tempos. Nos anos 1980, vivida por Barbara Colen, ela é uma jovem mulher que acaba de escapar de um câncer. No presente, Clara, agora interpretada por Sonia Braga, é uma jovial avó de 65 anos, última habitante de um condomínio comprado por uma construtora que pretende demolir o imóvel e levantar um espigão no terreno situado na valorizada orla de Boa Viagem, no Recife. 

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Então, no eixo da narrativa, temos a mulher que se apega à sua casa e resiste à especulação imobiliária. Mas, este, digamos assim, tronco principal, se ramifica de maneira rica e viva, entrando em muitos outros aspectos, como a arrogância do poder econômico e as relações de compadrio e favorecimentos na sociedade brasileira, em particular nas classes dominantes. A narrativa também se expande para temas como a liberação sexual das mulheres, o complexo das relações familiares, a cumplicidade entre amigas, o relacionamento ambíguo entre patrões e empregados domésticos, etc. É mais um “retrato do Brasil” que passa pela lente de aumento da obra e nos é oferecido de maneira complexa, ambígua, contraditória. Numa sociedade como a nossa atual, dividida, simplista e simplória, Aquarius tenta nos devolver a vida em sua terrível complexidade. 

Não o faz de maneira professoral, de maneira nenhuma. Aquarius é agradabilíssimo de se ver. Imprime na tela um ritmo musical, caloroso, forte em muitos momentos, divertido em outros. Conta com elenco excepcional, no qual desponta uma Sonia Braga em estado de graça. A eterna Dona Flor e Gabriela, dos seus trabalhos mais famosos no cinema, tem em Clara o papel de sua vida, o mais complexo de sua carreira cinematográfica. 

Aquarius é um filme brilhante, um elogio à resistência, mesmo quando a causa está perdida. Cabe à perfeição em nosso tempo.

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