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Berlinale honra seu título de festival mais politizado do mundo

Filmes tem abordado abordam questões contemporâneas, como as crises de refugiados, imigrantes e racismo

Por Luiz Carlos Merten
Atualização:

BERLIM - Existem, em pelo menos dois filmes que concorrem na Berlinale – o francês Quand on a 17 Ans, de André Téchiné, e o teuto/americano/mexicano Soy Nero, de Rafi Pitts –, impressionantes cerimônias fúnebres militares. Pompa e circunstâncias mesmo que os mortos sejam indesejáveis para o 'sistema'. Um piloto que está a ponto de denunciar a hierarquias do Exército, um imigrante que só se tornou militar na expectativa de conseguir o green card. A morte lhes concede uma grandeza que a vida lhes nega. O responsável pelo cerimonial agradece à viúva atarantada em nome da 'América'. Spike Lee não tem ilusões. Em Chi-Raq, ele cita estatísticas. Somente em Chicago, Illinois, morreram nos últimos anos mais negros, vítimas de armas de fogo, que soldados dos EUA na guerras do Afeganistão e do Iraque.

Para acabar com a carnificina, as 'irmãs', lideradas por uma deusa afrodescendente de nome Lisístrata, repetem a greve de sexo da comédia do grego Aristófanes. Na coletiva de Fuocoammare, o italiano Gianfranco Rosi comparou a tragédia dos imigrantes, na Europa atual, a um novo genocídio – um novo Holocausto. E, em Mort à Sarajevo, que Denis Tanovic adaptou de Hotel Europa, de Bernard Henri-Lévy, Jacques Weber reflete, amargurado – não aprendemos nada com o Holocausto? De que outras maneira explicar que os genocídios sigam se repetindo em diferentes partes do planeta? A Berlinale, todo cinéfilo sabe, tem a fama de ser o mais politizado festival de cinema do mundo. O diretor artístico Dieter Kosslick, justificando sua seleção, anunciou que havia optado pela contemporaneidade. Histórias de imigrantes (muitas), conflitos de autoridade – no âmbito da família, entre pais e filhos, nas relações institucionais, entre cidadãos e governantes.

Diretor André Téchiné, ao centor, com o elenco de 'Quand on a 17 Ans' na Berlinale Foto: AP Photo|Axel Schmidt

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O melhor filme até agora é Fuocoammare, documentário que acompanha garoto na ilha de Lampedusa, a meio caminho entre o norte da África e a Sicília. Lampedusa está na rota dos imigrantes que se lançam ao mar, em balsas precárias, tentando chegar à Europa, terra do sonho. Muitos (a maioria?) morrem na tentativa. As cenas do garoto parecem ficcionais, mas Rosi jura que não foram 'premeditadas'. Quererás dizer, com isso, 'encenadas'? Como documentário, Fuocoammare inscreve-se na tendência moderna das 'bordas'. Entre ficção e documentário. E é melhor que Sacro Gra, com o qual Gianfranco Reosi já ganhou o Leão de Ouro em Veneza. Os filmes não abordam apenas questões políticas, ou então tudo é política. O despertar da homossexualidade de dois garotos de 17 anos no filme de Téchiné, a difícil decisão de uma stand up comic de abortar, quando descobre que seu bebê, além da Síndrome de Down, tem sérios problemas cardíacos, no único concorrente alemão, 24 Weeks, de Anne Zohra Berrached. E não se pode esquecer do belo concorrente português, o epistolar Caretas da Guerra, que Ivo M. Ferreira adaptou da correspondência, já convertida em livro, de Antônio Lobo Antunes com a mulher grávida, durante as guerras coloniais do começo dos anos 1970.

O festival tem abordado questões como o papel do intelectual no mundo. A professora de filosofia Isabelle Huppert tem de conciliar a separação do marido que a abandonou com a cobrança de engajamento nas questões da realidade cotidiana em L'Avenir, de Mia Hansen-Love. O marinheiro de Crosscurrent, do chinês Yang Chao, viaja na poesia e no tempo – na poesia do tempo? - em busca de uma mulher mítica que lhe escapa. A viagem o leva a paisagens desoladas, à barragem de Três Gargantas, a um mundo em transformação. A China é um grande desafio, misteriosa e incompreensível como o filme, mas a cena em que a garota desenha o poema na areia é, isoladamente, das coisas mais fortes desse festival. Boris sans Béatrice, do canadense Denis Coté, é sobre um homem que faz o inventário de sua vida e implode para se reconstruir. Genius, de Michael Grandage, é sobre a relação do escritor Thomas Wolfe com o editor Max Perkins. O gênio do título é o autor ou o editor? Thomas/Jude Law tem algo de monstruoso na sua vitalidade egoísta, mas o filme não seria de Hollywood sem um gesto regenerador para com o pobre Perkins/Colin Firth, que sofre mas talvez seja recompensado com nova indicação para o Oscar (em 2017?). O festival avança. A última palavra será do júri presidido por Meryl Streep.Revista especializada elege favoritos 

Por conta do rigor do inverno, a Berlinale não tem o glamour do tapete vermelho de Cannes. O festival termina por acontecer nos interiores aquecidos. Raras estrelas se arriscam a um decote mais ousado, e quando isso acontece é capa nos jornais locais. Mas muita coisa está sendo celebrada por aqui. Os30 anos do Teddy Bear, o Urso de Ouro queer, com direito a restauro do primeiro filme gay da história, Different from the Others, de Richard Oswald, com Conrtasd Veidt, de 1919. 

E a revista The Hollywood Repórter publicou ontem sua lista do melhor da Berlinale. O filme de André Téchiné, Quand on a 17 Ans, o de Mia Hansen-Love, L’Avenir, o de Jeff Nichols, Midnight Special - que a crítica de língua inglesa, sabe-se lá por quê, está amando -, e o de Gianfranco Rosi, Fuocoammare. Todos integram a competição e, com exceção do norte-americano, são ótimos. A surpresa é que, de todas as demais seções, a revista escolheu Don’t Call Me Son, no Panorama, como melhor. Não Me Chame Filho é o título internacional de Mãe Só Há Uma, o novo longa de Anna Muylaert, que The Hollywood Reporter define como pungente e cheio de energia.