Análise: Nise da Silveira teve parte importante na história da nossa arte

Seria uma grande pena deixar de conhecer as obras perturbadoras, e não raro comoventes, que a psiquiatra ajudou a revelar

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Por Sheila Leirner
Atualização:

Alguém já ouviu falar de Adolf Wölfli, Aloïse, Scottie Wilson ou Emannuel, o Calígrafo? Provavelmente não. Mas isso não tem nada de espantoso quando não se frequenta as margens mais estranhas da sociedade onde vegetam anarquistas, vagabundos, loucos ou alcoólatras profundos. Além de que, a sua “arte bruta” – nome inventado pelo artista e viticultor Jean Dubuffet em seu ensaio Cultura Asfixiante (1968), inspirado pelo estado bruto do vinho que ainda não foi contaminado – quase sempre permanece alheia ao ambiente cultural e resguardada de sua influência.

E, no entanto, seria uma grande pena deixar de conhecer as obras perturbadoras, e não raro comoventes, destes seres que produzem o que costumamos definir também como “arte incomum”, “virgem” , “paralela”, “marginal” ou “genuína” – tudo o que a grande psiquiatra e pesquisadora dra. Nise da Silveira felizmente ajudou a revelar. Sim, porque ela – além de ter sido uma precursora no seu domínio – teve parte importante na história da nossa arte.

A dra. Nise da Silveira e o artista Raphael Domingues na década de 1960 Foto: DAGOBERTO MARQUES/DIVULGAÇÃO

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Nise colaborou até mesmo como especialista, junto ao poeta e pioneiro curador inglês Victor Musgrave, marchand de Yves Klein, Yoko Ono e outros artistas de Fluxus. Os dois, a convite do professor Walter Zanini na 16ª Bienal de São Paulo (1981), participaram da organização, ao lado da curadora Annateresa Fabris, de Arte Incomum, a primeira grande exposição “oficial” no Brasil sobre o tema. Mostra que apresentou, além do acervo do Museu de Imagens do Inconsciente, dirigido pela psiquiatra, as obras de Wölfli e as fotos do Palácio dos Sonhos, uma construção fantástica que o carteiro (facteur) Cheval levou mais de 30 anos para terminar.

A aventura do museu, tão terapêutica talvez quanto cultural, começou em Engenho de Dentro (RJ) já nos ateliês de pintura e modelagem fundados por Nise da Silveira, em 1946. A produção foi tão consequente que, em 1952, o acervo inaugurou-se numa sala para, quatro anos depois, passar a ocupar verdadeiras instalações e obter o apoio de médicos ilustres. Hoje, o Museu de Imagens do Inconsciente é uma instituição viva com mais de 100 exposições realizadas e um total de 352 mil obras em crescimento, visto que as sessões de terapia continuam nas oficinas do hospital. Um dos artistas mais excepcionais dentre eles foi, sem dúvida, Arthur Bispo do Rosário. Outros, porém, entre dezenas, podem ainda ser citados como Adelina Gomes, Carlos Pertuis e Fernando Diniz.

Curiosamente, grande parte tem a história relacionada a um afeto frustrado. A questão da afetividade foi primordial no trabalho de Nise. Tanto que Leon Hirszman realizou em 1986 a sua interessante trilogia Imagens do Inconsciente, numa linguagem cinematográfica singular que pudesse transmitir três destes casos clínicos (citados acima) a partir dos seus próprios trabalhos. Além do cineasta, no exterior e também no Brasil, grandes críticos e historiadores se debruçaram sobre a arte dos loucos.

Mas a “descoberta” e a atenção a essa arte são antigas. Sua “invenção”, em termos de compreensão e valorização de uma expressão marginal, data do século 19. Podemos encontrar escritos de psiquiatras como Ambroise Tardieu, já em 1872, que vê na arte dos loucos um “interesse real”.

No século seguinte, entre as duas grandes guerras, cresce o interesse dos poetas e artistas surrealistas por esses delírios. Eles intrigam também Derain, Matisse, Picasso. Sem esquecer o grupo Der Blaue Reiter (O Cavaleiro Azul), Kandinsky, Klee e sua “necessidade interior”. A história da arte é uma, a da psiquiatria, outra. Ambas se tocam em momentos paradigmáticos, em que arte e ciência exploram experiências e conhecimentos extremos. 

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