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Análise: 'Martírio' é um painel dantesco, feito de indignação e lucidez política

Filme não se limita a relatar esse cruel estado de coisas

Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Por Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

De Martírio, de Vincent Carelli, se podem dizer muitas coisas. Entre elas a de que o diretor toma partido franco de seus personagens e faz de sua obra uma vigorosa denúncia do genocídio indígena no Brasil. Carelli, que há muito se ocupa da causa indígena, não esconde suas simpatias e tampouco sua dor. Quando se apresentou como concorrente no Festival de Brasília do ano passado, disse sem rodeios que havia chorado ao visitar de novo os índios e ver em que estado se encontravam, depois de tantos anos de lutas.   Enfim, o documentário, forte e emocionante, expõe um painel desolador ao longo das suas 2h40 de duração. Não haveria para esse afresco título mais adequado que este - Martírio, um testemunho do longo genocídio a que vêm sendo submetidos os povos originários do País.

Cena de 'Martírio' Foto: Vitrine Filmes

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O caso é que o filme não se limita a relatar esse cruel estado de coisas, e é aí que começa a sua diferença em relação ao outros que se ocupam da mesma temática. Carelli de fato mostra a saga trágica dos guaranis-caiovás, mesclando cenas com os índios tomadas ao longo dos anos e outras de arquivo. Recria, assim, uma cronologia de extermínio que vem dos tempos da Guerra do Paraguai, passando pelas políticas humanitárias-integracionistas de Rondon, e avança pelo Estado Novo, os governos militares e os 13 anos do PT no poder. Não fica, no entanto, por aí. Nesse aceno ao contexto, e portanto à História, mostra como a situações dos indígenas precisa ser entendida em outro contexto que não o das matas profundas e aldeias. Na verdade, o destino desses povos é decidido em outros ambientes, a saber nos escritórios das poderosas empresas do agronegócio e nos corredores do poder em Brasília. 

Se as imagens dos indígenas estão entre as mais pungentes, as cenas das discussões da questão no Parlamento brasileiro encontram-se entre as mais esclarecedoras - e beiram o ridículo. Carelli recupera cenas históricas, como as de Ailton Kranak pintando o rosto enquanto discursa durante a Constituinte. E contrapõe a essas imagens emocionantes sequências brutais, como as da senadora Kátia Abreu dizendo com todo orgulho que já haviam conseguido se livrar do MST, depois do Código Florestal, e faltava agora apenas remover a questão indígena do caminho dos ruralistas. Outros parlamentares se expõem sem qualquer pudor, conforme reza a ética política do nosso tempo, como aquele que diz que as demarcações ocorreriam só se passassem por cima do seu cadáver. Outro ainda que afirma que a sala do chefe de Gabinete de Lula, Gilberto Carvalho, era um antro, “frequentado por índios, negros, homossexuais, lésbicas, só família ali não entrava”.  De modo anedótico, o filme põe a nu a qualidade da estrutura de poder no Brasil e, nesse aspecto particular, sua relação com a questão indígena. Tem valor didático, como o da famosa sessão de abertura do impeachment de Dilma, com parlamentares dedicando seus votos à família, aos filhos e a torturadores mortos.

O horror da política, associado a interesses econômicos obscuros, pinta o retrato da trágica questão indígena brasileira. Com seu painel dantesco, fruto da compaixão, mas também da indignação política, Carelli compôs um clássico imediato do documentário brasileiro.