Nunca houve um imbróglio como esse no Oscar. Parecido, talvez. Nos anos 1930, dois Frank, o Capra e o Lloyd, concorriam a melhor diretor, por Dama por Um Dia e Cavalcade. O apresentador da época abriu o envelope e disse – “Frank, c’me here”. Foi o Frank errado, o Capra. Quando ele chegou ao palco é que foi feito o esclarecimento. Era o outro. Naquele tempo, o Oscar não era o evento planetário de hoje, quando é transmitido ao vivo para 245 países. Isso até originou uma piada do mestre de cerimônia Jimmy Kimmel. Investindo contra o presidente Donald Trump e as reações que ele têm provocado desde que assumiu, Kimmel disse que “íamos (os EUA) fornecer motivos para que todos (esses países) nos odeiem”.
Tem gente que passou boa parte do dia de ontem vendo e revendo a cena. Warren Beatty recebe o envelope com o anúncio do vencedor como melhor filme. Tem algo errado. Para o público, e para sua parceira de cena, Faye Dunaway – eles formaram a dupla clássica de Bonnie & Clyde, de Arthur Penn –, ele parece estar só fazendo gracinha, ou querendo prolongar o suspense. Faye anuncia o vencedor – La La Land. A equipe sobe ao palco, inicia os agradecimentos. Alguém interrompe. Não é uma piada. O vencedor é Moonlight – Sob a Luz do Luar. Havia uma polarização entre os filmes de Damien Chazelle e Barry Jenkins. Ela foi sendo construída ao longo dos 40 dias entre o anúncio dos indicados e a premiação.
La La Land foi indicado em 14 categorias, um recorde. No dia do anúncio, imediatamente criou-se uma polarização entre La La Land e Manchester à Beira-Mar, de Kenneth Lonergan. A posse de Trump e suas primeiras medidas – que provocaram repúdio na classe artística – foi que levaram à nova polarização. Oscar so white, mexicanos, imigrantes islâmicos, negros. De repente, Moonlight passou a ser o filme certo para o momento. Um filme sobre inclusão. Um garoto negro, gay e pobre precisa forjar identidades para ser aceito no mundo. Vive as vidas dos outros antes de se confrontar, no episódio final do filme, com a possibilidade de viver a própria vida. Comparativamente, o casal brancodeLa La Land parecia um retorno ao Oscar so white. Não era. O jazz, essencial dentro do filme, abraça a questão da negritude. Conflito entre tradição e modernidade. Ryan Gosling quer ser um revolucionário do jazz, mas está ligado à tradição. E o jazz é um corpo vivo, como o filme de Damien Chazelle mostra.
A questão é – o imbróglio fortalece ou esvazia a vitória de Moonlight? A Academia, dividida, celebrou a polarização que marcou toda a 89.ª edição do prêmio. Melhor direção (e outros cinco prêmios) para Damien Chazelle, melhor filme (e outros dois prêmios) para Barry Jenkins. O problema é que, no clima de confusão que se estabeleceu no palco do Dolby Theatre – a equipe de La La Land, que parou seus agradecimentos, a de Moonlight que agora corria contra o tempo, tentando dizer alguma coisa nos minutos finais da festa que se encerrava –, todo mundo falou a mesma coisa. São filmes sobre a necessidade de amor, sobre solidão, sobre dar e receber.O curioso é que La La Land passa um pouco esse sentimento de derrota. Ryan Gosling e Emma Stone chegam lá, mas não existe happy end. A cena do palco metaforizou o filme. Moonlight vai na contramão. Black tem, enfim, uma possibilidade de viver sua vida. O filme também, pois venceu.
Havia essa fantasia de que o Oscar seria marcado por atos contra Trump. Meryl Streep dera o tom ao receber a homenagem do Globo de Ouro. Mahershala Ali, o melhor coadjuvante (por Moonlight), como negro e islâmico, foi incisivo no Actors Guild. O problema é que todo mundo passou a impressão de recuar. Mahershala não foi tão duro, Viola Davis, melhor coadjuvante por Um Limite entre Nós, de Denzel Washington, não foi longe nas questões da pobreza e do racismo como tem ido nas entrevistas. Sobraram as provocações de Kimmel – o aplauso para Meryl Streep, os tuítes para Trump.
De forte mesmo, nessa noite decepcionante, só o Oscar de filme estrangeiro. Para O Apartamento, do iraniano Asghar Farhadi, o filme certo para o momento. Farhadi não foi. Fez ler um documento manifestando repúdio ao decreto de Trump que veta nos EUA a entrada de cidadãos de sete países de maioria muçulmana, incluindo o Irã. O filme foi ovacionado, e, aí, sim, houve uma tomada de posição. Sutilmente, ela prosseguiu, mas terá sido mera coincidência? Ninguém podia garantir a vitória de Farhadi, mas logo veio um mexicano, Gael García Bernal, apresentar os prêmios de animação, e foi aplaudidíssimo. E, depois de Gael, outra mexicana – Salma Hayek, também muito aplaudida ao anunciar o prêmio de curta documentário. Aqueles 15 minutos, se tanto, compuseram o núcleo duro - e mais político - desse Oscar.