Akira Kurosawa, homenagem em livro e exposição

Teruyo Nogami lança 'À Espera do Tempo', sobre os bastidores dos filmes e abre mostra em SP

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Por Luiz Zanin Oricchio
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À Espera do Tempo - Filmando com Kurosawa

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, de Teruyo Nogami, é uma bela homenagem prestada ao centenário do mestre japonês. Nogami trabalhou junto ao cineasta de Rashomon (1950) a Madadayo (1993) - quer dizer acompanhou sua carreira desde o filme que o consagrou no Ocidente ao vencer o Festival de Veneza até a sua última obra. É, portanto, uma visão privilegiada, íntima, do método de criação de um dos mais importantes diretores do século 20.

 

No entanto, que ninguém espere de Nogami altas teorizações a respeito das propostas estéticas de Kurosawa. O maior encanto deste livro está em outra parte, em sua grande simplicidade, no olhar despojado de alguém que sempre considerou ter tirado a sorte grande ao conhecer e ganhar a confiança de um homem excepcional como Kurosawa.

 

Esse despojamento se expressa já no título. Ao vê-lo, ficamos imaginando que se trata de uma elucubração oriental sobre o devir, sobre essa matéria da qual somos feitos e com a qual lidamos tão mal. Matéria vital, pois, como dizia Borges, "o tempo é o mais urgente dos problemas". Contudo, Nogami, ao falar na espera do tempo, quer apenas evocar as horas mortas que aparecem no período de filmagem, quando se esperam pelas condições ideais para a captação de imagens. Enquanto elas não chegam, a equipe pode relaxar, descansar ou jogar conversa fora. Intervalo raro nessa luta contra o relógio que é uma produção profissional, quando cada minuto perdido significa custo extra no orçamento do filme.

 

Mas que ninguém se iluda também com esse despojamento. Afinal, ser simples é bem diferente de ser simplório. Nogami, de maneira sutil, evoca uma época ainda artesanal do métier cinematográfico, quando um diretor era capaz de aguardar um dia inteiro, junto com toda a sua equipe, à espera que a luz do dia fosse do seu agrado, ou que a formação de nuvens apresentasse a composição julgada ideal para expressar determinado estado de espírito.

 

O próprio Kurosawa havia aprendido essa arte da paciência de outros cineastas. Em 1936, foi visitar o set de um filme de Sadao Yamanaka. O tempo estava perfeito. A luz, impecável. E nada de a filmagem começar. Perguntou qual era o problema. Responderam que o diretor aguardava a passagem de uma nuvem para dar volume ao céu. Hoje, ela seria feita por computação digital e pau na máquina, porque não se pode jogar dinheiro fora. Outros tempos.

 

Não que as razões de ordem econômica não importassem. Nada disso. Cinema é (também) uma indústria, em qualquer parte. Porém, esse realismo econômico não impede que Nogami olhe com suave ironia as contingências de ordem material. Em páginas engraçadas, ela descreve as condições de filmagem de Dersu Uzala, em 1973, uma coprodução com a então União Soviética. Aliás, a URSS tinha prevalência no projeto, que seria intitulado "uma produção soviética", embora garantissem que o processo criativo de Kurosawa seria plenamente respeitado.

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Ao que tudo indica, essa obra-prima saiu mesmo do jeito que o cineasta queria, mas isso não impediu que tentassem submetê-lo ao sistema soviético de filmagem. Eles tinham como norma um cronograma rígido, prevendo uma quantidade determinada de metros de filme realizados por dia, segundo alguns parâmetros variáveis: filmagens internas, 55 metros; externas no verão, 35 metros; no inverno, 25. Cenas com participação de animais, entre 16 e 21 metros. O sistema baseava-se na programação leninista da produção planejada, aplicada a uma fábrica de salsichas ou a uma filmagem.

 

É claro que o cinema não funciona assim de maneira linear. E boa parte do encanto de Esperar o Tempo se deve à descrição dos contratempos e dificuldades de filmagem, que se tornavam ainda mais agudos diante do perfeccionismo de Kurosawa.

 

Quem vê um filme no conforto da sala de cinema, não imagina a quantidade de desafios - e desconfortos - que custou. Para ficar em Dersu Uzala: a equipe deslocou-se para a Sibéria, onde encontrou um verão insuportável, cheio de mosquitos e carrapatos. Entretanto, com o passar do tempo, e a chegada do inverno, os inconvenientes do verão passaram a ser vistos com saudade, sob uma temperatura que podia chegar a 40 graus negativos após o cair do sol.

 

Pouco antes do início das filmagens, Kurosawa havia tido uma crise de depressão e tentara o suicídio. Durante o trabalho na Sibéria, tomava uma garrafa de vodca por dia, caso contrário não conseguia dormir. Sob pressão, na fase final do trabalho aumentou a dose diária para duas garrafas.

 

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Nada disso transparece na bela história de amizade entre um capitão russo Vladimir Arseniev (Yuri Solomin) e o caçador Dersu Uzala (Maksim Munzuk), num dos filmes mais envolventes e tocantes da carreira de Kurosawa. Nem em qualquer cena transpira o péssimo humor do diretor que, numa crise, chegou a jogar um prato de mingau na pobre assistente. Ofendida, ela deixou de falar com Kurosawa até que este se desculpasse. Mas, hoje, ao escrever, Nogami se penitencia: "Na época em que filmamos Dersu Uzala, Kurosawa estava esgotado física e mentalmente. Até hoje me arrependo por não ter entendido o sofrimento porque passava".

 

Essas histórias de bastidores - ora ternas, dramáticas ou engraçadas - passam de um longa a outro ao longo das páginas de À Espera do Tempo. Nogami fala de Rashomon, de Os Sete Samurais, de Kagemusha, Ran, enfim, dos grandes filmes desse artista notável. Kurosawa por certo vivia imerso em cogitações sobre cada um desses trabalhos que continuam a nos desafiar. Nogami, no entanto, observa as contingências práticas das filmagens.

 

Há um abismo entre aquilo que um cineasta imagina e aquilo que consegue colocar em prática. Ela lembra, por exemplo, que em Os Sete Samurais tiveram necessidade de muitos cavalos para compor as cenas de ação - "cerca de 50 animais", conseguidos com os camponeses da região onde o filme foi feito. Contudo, em Kagemusha, precisavam de três vezes mais. Conta como Kurosawa teve enorme dificuldade em conseguir emprestados 150 puros sangues de um criador e então tiveram de se virar com cavalos em fim de linha, a caminho do matadouro para servir de alimento. Segundo outro assistente, Hirai, essa comutação de pena, no corredor da morte, faria os cavalos trabalharem com alegria. Parece que funcionou. Mesmo assim, tiveram grandes problemas para conter os animais nas cenas de batalhas, com as quais obviamente não estavam acostumados.

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Há muito que aprender também dos bastidores de Ran, inspirado em Rei Lear, de Shakespeare. Nogami conta que Kurosawa estudava a planta das filmagens como um general que medita sobre a batalha a travar no dia seguinte. Discutia a posição dos atores e figurantes à exaustão, o que é compreensível em um diretor tão plástico. O problema maior em Ran foi a construção de um castelo que deveria ser destruído por um incêndio. A dificuldade eram as paredes de pedra, de mais de 15 metros de altura. O truque era fotografar pedras de um castelo de verdade e colar as imagens sobre peças de isopor. Acontece que isopor pega fogo como papel. Como fazer para não tornar a cena ridícula? O jeito foi colocar camadas de cimento no isopor e depois pintar as "pedras" de modo a parecerem envelhecidas. "Um trabalho sobre-humano", que consumiu meses e um milhão de dólares, conta Nogami. Tudo para que fossem produzidos os dois minutos da cena do incêndio na tela. Assim é o cinema.

 

Muito nos é revelado desse pano de fundo das filmagens. Porém o mistério da grande arte permanece. A própria Nogami sabe disso. Nas últimas páginas, confessa: "Mesmo concedendo que o Kurosawa que conheço pode representar apenas a ponta do rabo do elefante, pareceu-me uma boa ideia deixar um relato do que realmente sei dele, por pouco que isso possa ser". Na verdade, esse pouco é muito. O possível para roçar a personalidade de um dos grandes criadores de imagens do século do cinema.

 

Livro: À Espera do Tempo

Autora: Teruyo Nogami

Tradução: Diogo Kaupatez

Editora: CosacNaify/Mostra

(320 págs., R$ 69)

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Exposição: Kurosawa - criando imagens para cinema.

Paralelamente ao lançamento do livro, Teruyo Nogami inaugura uma mostra de desenhos de Akira Kurosawa, que serviram como base para seus filmes. Livro e mostra fazem parte da programação da 34.ª Mostra Internacional de Cinema.

Abertura: 22 de outubro, às 20h (convidados)

Até 28 de novembro, de 2010, de terça a domingo, das 11h às 20h

Instituto Tomie Ohtake (Av. Faria Lima, 201 - entrada pela Rua Coropés - Pinheiros)

Fone: 11.2245-1900

Entrada gratuita

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