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'A Vizinhança do Tigre' cava um espaço nas salas da cidade

Filme é lançado dois anos depois de vencer a Mostra Aurora

Por Luiz Carlos Merten
Atualização:

Affonso Uchoa nasceu em São Paulo, mas a família mudou-se para Contagem, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, onde ele viveu até os 11 anos. Família proletária, casa na periferia. Affonso tinha os seus brôs. Depois, ele partiu para o mundo. Estudou, sonhou (acordado) com o cinema, virou cineasta. Os amigos permaneceram na quebradas. Cada um seguiu seu caminho. Affonso voltou às origens e cresceu dentro dele a vontade de fazer um filme sobre os amigos. Nós que nos amávamos tanto. Esse filme demorou cinco anos para ser gestado. Venceu duplamente a Mostra Aurora, menina dos olhos da Mostra de Tiradentes, em 2014. Prêmio da crítica, prêmio do júri jovem. Dois anos depois, A Vizinhança do Tigre cavou seu espaço num mercado difícil (hostil?) para o cinema mais autoral, em São Paulo.

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Nos últimos dias, o público tem sido bombardeado com informações sobre o Oscar. Não sobra muito tempo nem espaço para o cinema das quebradas. OK, você ainda não viu A Vizinhança do Tigre, mas agora, digamos, que o Oscar já passou, que tal olhar um filme que, além dos prêmios, tem a urgência da realidade vivida e sofrida.? Na quarta, no Cine Olido, circuito Spcine, haverá um debate após a projeção. Você não está só convidado – está intimado a comparecer. Muitos filmes do Oscar vão passar. O Tigre vai ficar, como um dos melhores do ano – com O Cavalo de Turim, de Béla Tarr, outro exemplo de cinema autoral, e exigente, em cartaz.

Foram quatro anos de gravações – 2009 e 2010, depois 2011 e 12. A montagem durou um ano inteiro – 2013. E, em 2014, a estreia em Tiradentes, a premiação. Uchoa conta que o processo foi demorado. Ele tinha a ideia, e alguns dos personagens, os amigos. “No durante, houve um casamento, uma morte. E eu acho que foi a morte do Eldo que tornou o filme mais urgente, visceral. Antes, eu queria fazer justiça aos amigos que não tiveram as mesmas oportunidades que eu. A morte do Eldo mudou o foco. Como amigo, como irmão, queria dar um testemunho da sua passagem pelo mundo.”

Eldo, Juninho, Neguinho, Adilson, Menor. Todos garotos de periferia, com seus sonhos e a dura realidade que ameaça tragá-los. “O tigre é o turbilhão interior. Ou você doma o tigre ou ele te devora”, reflete o diretor. Na periferia, como em qualquer lugar, os garotos querem andar direito. Mas existe a tentação da violência, das drogas. Um dos aspectos mais interessantes de A Vizinhança do Tigre é a prosódia das ruas. Como falam os brôs. Outra coisa é o imaginário de quem vive, ou se sente à margem. Os garotos brincam de mocinho e bandido – de bandido e bandido. O problema é que a arma de brinquedo pode virar de verdade. É desse universo que A Vizinhança do Tigre tenta dar conta. Um outro testemunho parecido concorria com o Tigre na Mostra Aurora – Branco Sai, Preto Fica, de Adirley Queirós. Outra quebrada – Ceilândia, na periferia de Brasílias, a Capital Federal. O Tigre venceu em Tiradentes, Preto, no Festival de Brasília. Esses filmes são espelhos do Brasil.

A Vizinhança do Tigre é um grande, belo filme. Impossível falar do filme de Uchoa sem falar do desfecho. Para evitar o risco de spoiler, pare de ler agora e leia o restante depois. Os garotos – todos – rolam seus skates em direção à câmera. Revelam a paisagem – Contagem. Originalmente, a cena estava lá pelo meio do filme. Na montagem, Uchoa e seu montador a deslocaram para o final. De fundo, um rap dos Pacificadores. Eu Queria Mudar. Os acasos do cinema. Uchoa gravou a cena por causa de Hugo, o Guim, personagem que virou periférico. Ali, rolando o skate, está um outro, que foi trazendo outro, e mais outro. A cena, em si, se você entra no clima, é de uma intensidade rara. O rap não é recurso externo, é a prosódia desses jovens. O mínimo que se pode fazer é ouvir essas vozes para tentar dar conta do País que quer, precisa, mudar.  

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