A eternidade de um dia com Theo Angelopoulos

Um dos principais cineastas da atualidade, diretor grego revela o processo de seu trabalho

PUBLICIDADE

Foto do author Ubiratan Brasil
Por Ubiratan Brasil
Atualização:

 

Apesar de não se conhecerem, o piloto e Angelopoulos, que está em São Paulo como principal convidado da 33ª Mostra Internacional de Cinema, têm mais em comum do que supõem. A Itália, por exemplo. Enquanto Massa constrói sua carreira na Ferrari, Angelopoulos tem os filmes de Rossellini, Visconti e Fellini como referência em sua cultura cinematográfica. "Quando morei em Paris, trabalhei na cinemateca e lá conheci, além desses, verdadeiras preciosidades como os filmes japoneses de Ozu."A França, aliás, representa um passo curioso em sua carreira. Embora tenha lá cultivado o principal de seu conhecimento visual (deslumbrou-se também com os americanos, como Orson Welles), sua obra não é bem-aceita pelos críticos franceses, que o tratam com certo desprezo. "Entendo a reação pois eles gostam de um cinema excessivamente falado, o que não é exatamente o meu."De fato, aos 74 anos, Theo Angelopoulos ganhou a reputação de cineasta do tempo justamente por buscar, no plano sequência, a lenta revelação do sentimento interior de seus personagens - Os Atores Ambulantes, por exemplo, de 1975, consiste em apenas 80 cenas que resultam em quase 4 horas de filme. Estreou no cinema em 1967, pouco antes do golpe de Estado que instaurou na Grécia a ditadura militar conhecida por Regime dos Coronéis. "Meu retorno, aliás, depois da temporada francesa, foi tumultuado pois cheguei durante uma manifestação de protesto popular, em que fui golpeado pela polícia sem nem saber o motivo."Interessado em acompanhar o desenrolar político, decidiu permanecer durante mais tempo, escrevendo sobre cinema para um jornal de esquerda. Traçou, assim, juntamente com os filmes que dirigia, um painel da Grécia daquela época, dominada por uma classe endinheirada que não poupava nem os comunistas arrependidos tampouco os pequenos burgueses que garantiram a instauração do regime militar.Angelopoulos moldou também seu estilo peculiar, criando obras-primas como Paisagem na Neblina (1988), em que filmou Orestes que acompanha um casal de garotos na sua busca do pai, que vive em uma Alemanha mítica. "Desde o início, meu estilo sempre foi esse", conta. "Acho graça quando ouço críticos e outros cineastas me perguntando sobre o trabalho de decupagem que faço de cada cena antes de filmar. Não desenho nada, não faço nenhuma preparação prévia. Apenas tenho a história já preparada em minha mente."O hábito, aliás, provocou um certo constrangimento quando participou, certa vez, de um encontro de roteiristas, em Paris. "Enquanto todos, como Jean-Claude Carrière, levaram pastas com anotações e desenhos, eu não tinha nada para apresentar."Tal sistema também deve ser bem absorvido pelos atores. E Angelopoulos costuma trabalhar com elencos internacionais, o que aumenta a dificuldade. "Em Um Olhar a Cada Dia (1995), por exemplo, eu tinha um representante do Actor"s Studio americano (Harvey Keitel), um discípulo de Ingmar Bergman (Erland Josephson), uma atriz da escola romena (Maia Morgenstern), além de diversos atores gregos", relembra. "Com todos, utilizo o mesmo processo: não entrego roteiro, apenas comento sobre como vai ser a história e a importância do papel de cada um." Foi durante a filmagem, aliás, que o italiano Gian Maria Volontè morreu, sendo substituído por Josephson.Angelopoulos prefere escrever textos literários a produzir roteiros. Busca a imediata cumplicidade do ator na empreitada. E foi com o italiano Marcello Mastroianni que ele estabeleceu a parceria mais produtiva e emotiva. "Eu tinha certa restrição em convidá-lo para rodar O Apicultor (1986), mas, ao contar detalhes do roteiro em nosso primeiro encontro, Marcello exibia as reações faciais que eu esperava para o papel."Voltaram a trabalhar juntos em O Passo Suspenso da Cegonha (1991) e repetiriam a dose em A Eternidade e Um Dia (1998), mas o ator não resistiu a um câncer de pâncreas e morreu em dezembro de 1996. Os olhos de Angelopoulos ficam marejados quando se recorda do último encontro, quando revelaria ao ator que o papel não seria dele. "Ele estava em cartaz com uma peça, em Paris, justamente um texto sobre um homem que enfrenta a morte", lembra o cineasta. "Fisicamente, Marcello estava irreconhecível, muito magro, mas seu magnetismo continuava em cena."Terminada a apresentação, combinaram de se encontrar em um restaurante próximo do teatro. "Eram apenas 100 metros mas Marcello precisou ir de táxi. Quando lá chegou e me encarou, logo percebeu o que eu iria dizer." Angelopoulos conta que, curiosamente, para esse filme, tinha desenvolvido um roteiro e entregue antes ao ator. "Justamente um roteiro que Marcello não conseguiria filmar. Quando conversamos sobre a história, ele me interrompeu quando eu disse que era uma trama triste. "A poesia jamais é triste, Theo", ele disse."Terminado o jantar, período em que a assistente de Mastroianni não conteve o choro em inúmeros momentos, Angelopoulos acompanhou o ator ser auxiliado a entrar em um táxi. "Antes de o carro sair, Marcello abaixou o vidro e me olhou. Chovia, por isso não sei se foi um pingo d"água ou uma lágrima que vi em seu rosto. Em seguida, ele me acenou e partiu. Foi a última vez que encontrei aquele homem excepcional." ServiçoPaisagem na Neblina (Grécia-França-Itália, 180 min.)Matilha Cultural - Hoje, 14 hO Passo Suspenso da Cegonha (Grécia-França-Itália-Suíça, 140 min.)Matilha Cultural - Hoje, 17h20

 

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.