PUBLICIDADE

Schulz, divertido, mas atormentado

Sai nos EUA uma biografia que já está causando polêmica ao mostrar o lado sombrio do criador da turma do Snoopy

Por Randy Kennedy
Atualização:

Há sete anos, desde a morte de Charles M. Schulz, o riquíssimo e famoso criador de um grupo de garotos de história em quadrinhos e seu divertido cachorrinho beagle, prosperou demais sua imagem de homem amargo, solitário e infeliz que escavava fundo em seus dissabores para criar suas tirinhas. E, com a publicação, neste mês, de uma biografia por David Michaelis, Schulz and Peanuts, que vasculha cada decepção e sentimento de abandono nos 77 anos de vida de Schulz, sua reputação de alma criativa atormentada parece fadada a crescer ainda mais. O livro foi escrito com a cooperação da família de Schulz, mas, nas semanas que antecederam o seu lançamento, alguns membros da família o criticaram, dizendo que enfatiza demais o seu lado melancólico e reservado em detrimento de outros aspectos de sua personalidade - generosidade, senso de humor e amor pela família. ''''Não é um retrato completo'''', declarou Jean Schulz. Monte Schulz, seu filho, a chamou de ''''biografia ridícula''''. O autor Michaelis defendeu-se dizendo que, depois de anos de pesquisa e centenas de entrevistas, ''''foi esse o homem que encontrei''''. Disputas como essa não são particularmente novas no mundo da biografia. Escritores e entes queridos com freqüência terminam se encarando através de um grande abismo que separa versões substancialmente diferentes de um sujeito que ambos alegam conhecer intimamente. No caso de Schulz, porém, a disputa parece trazer uma questão mais fundamental. Quase dois séculos depois de proscritos como Byron e Chateaubriand associarem sofrimento e criatividade, uma conexão que provavelmente teria causado espanto em Shakespeare ou Swift, ainda temos uma necessidade arraigada de acreditar na idéia do artista atormentado, achar que só aqueles que sofrem são os realmente infelizes, mesmo quando falamos de criadores de histórias em quadrinhos. Embora Schulz tenha dito que não via seus cartuns como arte séria, críticos e escritores tenderam a discordar, alguns comparando o escopo de sua carreira à de Balzac. O contista George Saunders disse que Peanuts o preparou para Beckett. Mas não decorre necessariamente daí que o homem por trás do trabalho fosse um Balzac ou um Beckett, ou mais que um muito talentoso e perspicaz artista popular. E foi com base nisso que Michaelis foi à luta, descobrindo muitas vertentes autobiográficas em suas tiras e descrevendo Schulz como um artista muito mais consciente de si do que se entendia anteriormente. Ele abordou temas como saudade, amor, angústia, decepção e desconfiança. Uma tira, desenhada quando o primeiro casamento de Schulz estava se desfazendo e sua esposa, suspeitando de um caso, verificava suas contas telefônicas, mostra Charlie Brown gritando para um Snoopy apaixonado: ''''E pare de fazer esses interurbanos!'''' Schulz era uma pessoa caseira e workaholic, cujas paixões, além das suas tirinhas, eram o golfe e o hóquei. Foi um professor de escola dominical que não só era absolutamente abstêmio, como desprezava a bebida e aqueles que a consumiam. Seu sorvete favorito era de baunilha. Uma mulher que o conheceu no auge da fama precoce o descreveu como um ''''gênio em ficar invisível''''. Na tentativa de explorar as fontes da eterna melancolia, não é fácil imaginar de onde poderiam ter vindo seus demônios - exceto de uma personalidade naturalmente sensível e rabugenta. Pelos parâmetros convencionais, ele teve o que George Plimpton (falando de si mesmo) chamou de ''''uma infância não infeliz''''. Seu pai, barbeiro em Saint Paul, sobrevivera à Depressão. Sua mãe pode ter sido reservada e contida, e morreu quando ele tinha 20 anos. Mas foi ela que o levou a suas primeiras exposições de quadrinhos; sabia que ele era fissurado. Comparados aos diversos infortúnios que caíram nas cabeças de conhecidos artistas atormentados da História - mãe prostituta (Jean Genet); vício em drogas (Coleridge); deformidades físicas (Toulouse-Lautrec) -, os que Michaelis descreve da juventude de Schulz parecem amenos e, às vezes, um pouco tolos. Seu pai costumava lhe fazer cortes de cabelo engraçados; ele teve de dormir num quarto com a avó, que roncava; tinha medo de garotas e tinha um senso de humildade norueguês esmagador; tinha pavor dos valentões de escola, embora os que o conheceram nessa época não conseguissem lembrar de um exemplo em que ele tenha realmente sido agredido por um deles. Patricia Hampl, uma poeta e memorialista que cresceu em Saint Paul e leciona na Universidade de Minnesota, sugeriu que nosso desejo de pensar em bons artistas como fundamentalmente perturbados decorre de uma necessidade, mesmo agora - talvez particularmente agora, no domínio da era do entretenimento -, de a arte ser algo separado de nossas vidas cotidianas, algo quase espiritual. ''''As pessoas não querem acreditar que alguém como elas poderia simplesmente se sentar diante de uma máquina de escrever ou de uma escrivaninha e criar algo grande e atemporal'''', disse ela. ''''A arte tem de ser o produto de muita miséria e sofrimento.'''' Ela comparou o impulso ao de teóricos da conspiração e sua relutância em acreditar na banalidade do mal: ''''É difícil aceitar que um sujeito pode simplesmente entrar num prédio e atirar no presidente.'''' Morris Dickstein, professor de inglês no Centro de Pós-graduação da City University de Nova York , acredita que, apesar do clichê do artista sofredor, a dor ainda merece uma boa parte do crédito como catalisadora da criatividade. ''''As pessoas que sempre tiveram uma vida feliz e viveram numa maré mansa e não tiveram muitos infortúnios realmente não tendem a ser pessoas criativas'''', disse ele. (Embora, é claro, existam exemplos contemporâneos de escritores e artistas bem-sucedidos que parecem ter tido vidas plenamente satisfatórias: John Updike? Jeff Koons?) Nesta era de aguda percepção de nossas neuroses e depressões, as de Schulz, por mais suaves que tenham sido, talvez tenham sido suficientes para qualificá-lo a se associar ao clube de artistas miseráveis modernos. E, no entanto, à sua maneira, Peanuts conseguiu deixar muito espaço de jornal tão desalentador quanto um cenário de Esperando Godot (com uma pipa, é claro, enganchada numa árvore seca e uma casinha de cachorro bem ao fundo). Como o próprio Schulz resumiu: ''''Todos os amores na tira não são correspondidos; todos os jogos de beisebol são perdidos; todas as notas de testes escolares são D menos; a Grande Abóbora nunca vem; e a bola de futebol americano é sempre puxada antes do chute.'''' TRADUÇÃO DE CELSO MAURO PACIORNIK

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.