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Pernambucano Tunga faz sua exposição mais ousada em São Paulo

Mostra usa o saber da ciência arcaica para criar novos seres

Foto do author Antonio Gonçalves Filho
Por Antonio Gonçalves Filho
Atualização:

Ao exibir as esculturas de sua série From La Voie Humide na galeria nova-iorquina Luhring Augustine, em maio deste ano, a mesma à qual pertencem as peças que expõe, a partir de hoje, na Galeria Mendes Wood, o artista pernambucano Tunga surpreendeu a crítica americana, que chegou a comparar seu trabalho ao do mítico artista alemão Joseph Beuys (1921-1986). 

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Há, de fato, algo que liga a obra dos dois, no sentido de que ambas são construídas por meio da conjunção dos mais disparatados materiais e objetos. Tunga, aliás, acredita, como Beuys, que a matéria está marcada para transcender, que está mesmo amalgamada com sua essência imaterial na forma da consciência. Beuys exprimia sua crença no transcendental por meio da escolha do material - feltro e banha, basicamente, por causa da experiência pessoal do alemão (seu avião foi abatido na guerra e ele foi envolvido por tártaros em feltro e banha, salvando-se do rigoroso inverno da Crimeia). Tunga vai além do trauma existencial. Volta a Plotino e à alquimia para criar corpos inspirados pela energia da conjunção que animou os protocientistas do passado a buscar o elixir da vida eterna. 

Como ciência oculta, a alquimia vive do mistério. Seus textos são herméticos, cifrados - e por vezes contraditórios. O título da exposição de Tunga faz referência à “via úmida”, uma das duas técnicas básicas que os alquimistas do passado usavam para transformar a matéria (a outra chama-se via seca, mais arriscada). Na via úmida, o orvalho é usado para umedecer a matéria-prima, tendo o sal como dissolvente e o enxofre como princípio ativo, masculino (o feminino é o mercúrio, volátil). Quando ambos se encontram, o coito é inevitável - e dele surge a vida. Nas esculturas da exposição, o espectador verá não apenas pedras de enxofre como pérolas, cristais, dedos, orelhas e outras parte do corpo, como se entrasse no laboratório de um alquimista iluminado. E é esse o papel que Tunga tem na arte contemporânea - reconhecido, aliás, mundialmente (só este ano ele faz quatro exposições, três delas no exterior).

Demiurgo. Tunga e suas esculturas de terracota e aço Foto: Tiago Queiroz/Estadão

A crítica americana viu nos caldeirões de terracota e tripés de aço alusões aos alquimistas da Idade Média, mas não só. Relacionou as formas de Tunga à sintaxe visual dos surrealistas, especialmente do escultor alemão Hans Bellmer (1902-1975), só porque a insubordinação de ambos tem na sexualidade quase explícita um meio de expressão (Bellmer usava bonecas eróticas para incomodar burgueses escandalizáveis). Tunga, evidentemente, não é Bellmer. Suas referências são mais eruditas. Há ecos da filosofia grega, da literatura de Lautréamont, dos desenhos e escritos do visionário William Blake, da poesia de Rimbaud, do cinema de Pasolini e, se alguém estiver em busca de uma referência escultórica, de Louise Bourgeois.

O novo corpo construído por Tunga com borracha, pérolas, esponjas, cerâmica e cristais deriva de diferentes formas orgânicas. Não são reconhecíveis de imediato. Nem isso seria possível. “É um corpo a partir do espelho, múltiplo, dinâmico, instável em termos morfológicos, pois vem amalgamado com a paisagem, a lua, o céu”, define o artista, que parte de desenhos, inspirados na narrativa alquímica, para chegar à escultura. Há tempos ele se dedica a ela, deixando um pouco de lado as performances - hoje restritas a pequenas intervenções relacionadas a esses objetos. Uma das razões de não estar presente na edição da 31.ª Bienal de São Paulo, para a qual foi convidado, se deve ao esgotamento desse e outros gêneros - como as instalações, verdadeira praga que contamina a arte contemporânea. Tunga revela estar mais interessado, hoje, nas cosmogonias e teologias do mundo antigo, no enigma que um objeto de arte propõe, ou seja, no modo oracular que a pós-modernidade artística esqueceu. Sua opção pela escultura, diz, é “política”, uma defesa do perene contra a efemeridade da performance e da instalação.

Tunga não propõe um caminho regressivo. Ao contrário. Sua Via Úmida é um convite à experimentação que os artistas contemporâneos parecem rejeitar, por desconhecimento da própria história e da filosofia. O neoplatônico Plotino serve de exemplo. Nos livros que compõem as Enéadas, que inspiraram Tunga, ele discursa tanto sobre a beleza e a matéria como sobre a eternidade e o Uno, aquilo que está em todas as coisas, mas não é coisa alguma. Os corpos construídos de Tunga ainda estão, segundo ele, num estágio de reconhecimento, como na teoria psicanalítica de Lacan - a da “fase do espelho”, em que a criança (entre os 6 e 18 meses) ainda é incapaz de reconhecer seu corpo nele refletido.

Na pele. As esculturas usam cristal, terracota e borracha, repetindo o caminho da 'via úmida' usado na alquimia Foto: Tiago Queiroz/Estadão

Existe uma “relação estreita” entre seus desenhos expostos na galeria e as esculturas, assinala Tunga. Os últimos funcionam como uma bula alquímica, sugere o artista, observando que a linguagem figurativa utilizada em sua enigmática assemblage não tem, porém, o caráter retromaníaco de uma certa figuração que nega as conquistas do abstracionismo moderno. Usar um vocabulário arcaico nem sempre é sinônimo de nostalgia, mas de sabedoria.

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No hospital, artista sai atrás da auroraUm dos artistas de maior renome entre os 100 que participam da mostra Made By... Feito por Brasileiros, que será aberta (para convidados) no dia 5, no antigo Hospital Matarazzo, na Bela Vista, Tunga deve apresentar nela uma variação dos corpos alquímicos que mostra na Galeria Mendes Wood. Excepcionalmente, deve contar com duas performers sentadas sob uma grande escultura, costurando com pérolas (que representam o esperma transformado) uma espiga de milho (como a da foto, símbolo antigo de fertilidade). Essa revitalização simbólica de um hospital que está fechado há 21 anos – e deverá ser restaurado até 2018 – faz uso de um vocabulário arcaico, ao recorrer a metáforas que hoje parecem banais, justamente para renovar a sintaxe visual sem considerar a carga histórica das ruínas do hospital. Não se trata, portanto, de uma obra 'site specific', pois não foi concebida especialmente para o local. Antes, ela lida com a luz de uma aurora primaveril, que Tunga identifica especialmente nos filmes de Pasolini, uma crença na renovação pela “via úmida” da criação. FROM LA VOIE HUMIDEGaleria Mendes Wood. R. da Consolação, 3.358, tel. 3081-1735. De 2ª a sábado, das 10h às 19h. Sábado, abertura, 16h, para convidados.

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