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Os segredos que o tempo revela

Memórias Secretas da Princesa do Brasil é fonte fundamental para entender a polêmica Carlota Joaquina

Por Lilia Moritz Schwarcz
Atualização:

Alguns livros podem, e devem, ser lidos de trás para frente - ao revés -, e Memórias Secretas da Princesa do Brasil, de José Presas, é exemplo gritante dessa prática pouco usual. Escrito em 1830 pelo ex-secretário particular de Carlota Joaquina, que diz ter "trabalhado diariamente ao lado da princesa por quase quatro anos", de 1808 a 1812, a obra não passa do relato de um ressentido que, diante do não recebimento do salário (cuja conta apresenta em detalhes), resolve narrar intrigas palacianas, as quais teria presenciado em lugar e momento privilegiados: no contexto em que a Corte portuguesa andava estacionada no Brasil, fugida de Napoleão Bonaparte. Se o documento tivesse restado perdido, e entregue à sua real dimensão, não haveria motivo para festejar a nova publicação, até agora considerada muito rara no Brasil. O problema é que o livro foi reproduzido inúmeras vezes, e transformou-se - nesse lento movimento do "quem conta um conto aumenta um ponto" - na fonte fundamental para entender essa personagem polêmica chamada Carlota Joaquina, bem como o movimento do Carlotismo - que levou a princesa a lutar, no Brasil, pelo trono da Espanha e das colônias espanholas na América, e a imiscuir-se em todo tipo de manobra política. Conforme escreve Presas no prefácio da obra: "Se não é coisa nova, tampouco é inútil ou desagradável apresentar ao público os acontecimentos do passado... a liberdade é a alma da história." De fato, o secretário contrariado esmera-se em desenhar o perfil controverso de Carlota; aquele que ficaria guardado na memória oficial. Sem travas fáceis, nosso relator encontraria na princesa personagem das mais indicadas: comenta seus gastos excessivos - a mala de sapatos e o consumo elevado de joias; ironiza o apetite sexual da dirigente, que encontrou saindo de seus aposentos "com o semblante risonho e aceso, como quem acaba de dançar ou fazer outro tipo de exercício violento"; o hábito inveterado de falar mal do esposo d. João; os amigos "efeminados"; ou as expressões vulgares que "ofenderiam a moral e a decência se aqui fossem repetidos". Mas José Presas, um aventureiro espanhol que chegou ao Brasil apenas a tempo de se safar de uma confusão em Buenos Aires, tinha e não tinha razão nas suas descrições ferinas. De um lado, elas não seriam tão secretas assim, uma vez que, como mostra Laura de Mello e Souza em excelente introdução, no texto descrevem-se mais urdiduras diplomáticas do que intimidades compartilhadas. Além do mais, se Carlota possuía temperamento dos mais intempestivos - e os bilhetes reproduzidos servem como prova -, era também a pessoa errada no lugar certo e vice-versa. Num tempo em que mulheres não faziam política, ela foi antes de tudo uma ativista; em meio à Corte portuguesa, na qual adentrou por laços de casamento, nunca deixou de pensar e se sentir como espanhola. O contexto também não poderia ser mais apimentado. Os Bourbons espanhóis haviam feito uma política em tudo enganosa e, a despeito de terem se unido aos franceses, facilitando inclusive a invasão de Portugal, acabaram caindo na armadilha de Bonaparte: perderam a coroa em junho de 1808. Carlota, portanto, mal havia chegado ao Brasil quando passou a arquitetar uma maneira de, no impedimento do pai e do irmão, ocupar o trono; já que estava ao abrigo do conturbado ambiente europeu. A princesa era obstinada, intrigante, mas também inteligente e instruída, ainda mais quando comparada à média da intelectualidade local. Quem sabe Carlota mirasse o exemplo de outras reinantes; sobretudo Isabel de Castela, o grande modelo para qualquer uma que pretendesse tomar as rédeas de Governo. Presas não era, entretanto, homem afeito a esse tipo de novidade. Ao contrário, em nome de rever seu dinheiro amargamente merecido ("nada de dormir, dizia ela, só trabalhar e andar para a frente"), transforma seu depoimento numa sucessão de lamúrias, e jamais perde a oportunidade de avacalhar as pretensões da princesa: "Se para governar não fosse necessário falar, talvez as mulheres governassem melhor que os homens." Não obstante, nesse tempo dado a contradições de toda ordem, parecia difícil manter lealdades a uma bandeira só. Carlota e seu secretário eram, ambos, representantes de dois ou muitos mundos, e por isso oscilaram aos sabores dos ventos, temperados por nações poderosas como França e Inglaterra. Carlota tentaria tornar-se dirigente, ao menos das colônias espanholas na América, mas em vez do sucesso ganharia o isolamento: foi detestada pelos ingleses, colocada de escanteio por d. João (sempre temeroso de seus golpes) e transformada num espécie de rainha má, a madrasta dos brasileiros, descrita a partir de seus costumes descontrolados, seu caráter brigão e sua aparência por demais masculinizada. O panfleto seria publicado, porém, tarde demais: apenas em inícios de 1830, quando a rainha viúva entregava a alma ao Criador. Endividada, ela morreria sem experimentar o dissabor de ler as duras palavras de Presas. O ex-secretário não seria ressarcido, mas talvez se sentiria vingado se tivesse conhecimento da difusão que a obra recebeu: não há livro de história do Brasil, da Espanha ou de Portugal que não se remeta ao documento na hora de caracterizar a "voluntariosa" princesa que, mesmo sem querer, ficou atada à trama da história de seu intrigante. Afirmava ele que de nada adiantava rogar a Deus, dotar conventos e igrejas ou encher de donativos frades folgazões. Carlota seria mesmo vítima da máxima de Racine, devidamente evocada por nosso insistente secretário nas conclusões de seu livro: "Não há segredo que o tempo não revele." Lilia Moritz Schwarcz, professora do Departamento de Antropologia da USP, é autora, entre outros, de O Sol do Brasil (Companhia das Letras) Memórias Secretas da Princesa do Brasil José Presas Phoebus, 247 págs., R$ 36

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