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Os aeroplanos em Brescia

Por Franz Kafka
Atualização:

Chegamos. Ainda antes do aeródromo há uma esplanada com casinholas de madeira, de aspecto suspeito, diante das quais seria de esperar outras placas que não "Garagem", "Grande Bufê Internacional" e assim por diante. Pelo caminho, mendigos mostruosamente gordos em suas cadeiras de rodas estendem-nos a mão, e na pressa sentimos a tentação de pular por cima deles. Ultrapassamos muita gente e muita gente nos ultrapassa. Olhamos para o céu, afinal de contas é disso que se trata aqui. Graças a Deus, ainda não estão voando! Não desviamos caminho e contudo não somos atropelados. Em meio e atrás e na contramão dos milhares de carruagens saltita a cavalaria italiana. A ordem e os acidentes parecem igualmente impossíveis. Ainda em Brescia, tarde da noite, queríamos chegar rápido a uma certa rua que julgávamos muito afastada. Um cocheiro pede três liras, nós oferecemos duas. O cocheiro desiste da corrida e, só por boa vontade, descreve o caminho terrivelmente longo até a tal rua. Começamos a nos envergonhar de nossa oferta. Pois bem, três liras. Subimos, a carruagem percorre três ruas curtas e chegamos aonde queríamos. Otto, mais enérgico que os outros, declara que não tem absolutamente a menor intenção de pagar três liras por uma corrida de um minuto. Uma lira é suficiente. Uma lira, aqui está. Já é noite, a ruela está deserta, o cocheiro é forte. Ele logo se inflama, como se a discussão já durasse uma hora. Como? Isto é trapaça. O que estávamos pensando? Tínhamos combinado três liras, pois que pagássemos três liras, três liras agora mesmo ou veríamos o que era bom. Otto: "A tabela ou a polícia!" Tabela? Que história era essa? Não há tabela para um caso assim. Tínhamos combinado um preço por uma corrida noturna, mas, enfim, que pagássemos duas liras e ele deixaria por menos. Otto, já amedrontado: "A tabela ou a polícia!" A gritaria prossegue, o cocheiro procura e por fim exibe uma tabela ilegível, toda suja. Chegamos a um acordo por uma lira e cinquenta, e o cocheiro segue adiante pela rua estreita, que não lhe permite dar meia-volta, não apenas furibundo mas, se não me engano, também melancólico. Pois o fato é que não nos portamos bem; não é assim que se faz na Itália, talvez em outros lugares, não aqui. Mas quem há de pensar nessas coisas no calor da hora! Mas não há que reclamar, não há como se tornar italiano em uma semana de férias. Mas o remorso não há de nos arruinar a alegria no campo de voo, isso só faria redobrar o remorso; mais que entrar, nós saltamos para dentro do aeródromo, em meio a essa exaltação de todos os membros do corpo que volta e meia nos toma a todos sob o sol que brilha aqui. Passamos pelos hangares, que, com suas cortinas puxadas, parecem palcos fechados de atores itinerantes. Nos frontões, leem-se os nomes dos aviadores cujos aparelhos eles abrigam e, mais acima, veem-se as tricolores de suas pátrias. Lemos os nomes de Cobianchi, Cagno, Calderara, Rougier, Curtiss, Moncher (um tridentino que leva as cores italianas, põe mais fé nelas que nas nossas), Anzani, Clube dos Aviadores Romanos. E Blériot?, perguntamos. Blériot, em quem pensávamos o tempo todo, onde está Blériot? Na área cercada diante de seu hangar, Rougier, sujeito baixinho de nariz notável, corre de um lado para o outro em mangas de camisa. Está numa azáfama um tanto vaga, braceja e agita as mãos, apalpa-se de cima abaixo enquanto vai e vem, manda os assistentes para trás da cortina, chama-os de volta, entra ele mesmo, tocando todos à frente, enquanto sua mulher, num traje branco, apertado, um pequeno chapéu preto bem preso aos cabelos, as pernas ligeiramente apartadas por baixo da saia justa, olha a esmo em meio ao calor, uma mulher trabalhadora com a cabecinha tomada de preocupação com os negócios. Diante do hangar ao lado, Curtiss está sentado, sozinho. Pode-se ver seu aparelho por entre as cortinas agitadas de leve pela brisa; é maior do que dizem. Quando passamos, Curtiss está com o New York Herald aberto nas mãos e lê uma linha bem no alto da página; meia hora mais tarde, passamos de novo, ele está no meio da página; mais meia hora, e ele terminou a página e começa a seguinte. É óbvio que não está com vontade de voar hoje. Nós nos voltamos e vemos o campo vasto. É tão grande, que tudo que se vê nele parece abandonado: o marco de chegada bem perto de nós, o mastro de sinalização ao longe, a catapulta de lançamento em algum lugar à direita, um automóvel do comitê organizador com a bandeirola amarela ao vento que descreve um arco pelo campo, para em meio à própria poeira e se move de novo. Criou-se aqui um descampado artificial numa região quase tropical, e nobres italianos, senhoras elegantes de Paris e mais milhares de outras pessoas reuniram-se aqui para forçar a vista e fitar o céu por horas a fio. Não há neste campo nada do que, nas quadras de esporte, produz variação. Faltam os belos obstáculos do hipismo, as linhas brancas do tênis, a grama fresca do futebol, o sobe-e-desce das pistas de ciclismo e automobilismo. Duas ou três vezes apenas, ao longo da tarde, um colorido cortejo equestre atravessa a planície. As patas dos cavalos são invisíveis em meio à poeira, a luz constante do sol não se altera até as cinco da tarde. E para que nada perturbe o aspecto desta planície, tampouco há música, apenas o assobio das massas nos lugares mais baratos tenta saciar o olhar e a impaciência. Aliás, visto das tribunas mais caras às nossas costas, o povaréu deve se confundir sem contraste com a planície deserta. Um grupo se apinha num certo ponto do cercado de madeira. "Como é pequeno!", exclama, suspirando, um grupo de franceses. O que está acontecendo? Abrimos caminho por entre a gente. Bem perto dali, do outro lado da cerca, encontra-se um pequeno aeroplano, pintado de amarelo, preparando-se para voar. Agora também vemos o hangar de Blériot e, ao lado, o de seu discípulo Leblanc, ambos construídos no próprio campo de voo. Encostado a uma das asas do aparelho, está Blériot, imediatamente reconhecível, a cabeça bem plantada sobre o pescoço, observando os dedos de seus mecânicos que trabalham no motor. Um dos mecânicos segura uma das pás da hélice para fazê-la girar, dá-lhe um tranco, ela se mexe, ouve-se algo assim como o resfolegar de um homenzarrão adormecido; mas a hélice não se move mais. Mais uma tentativa, dez tentativas, às vezes a hélice fica parada, às vezes ela dá alguns giros. O problema está no motor. Recomeçam os trabalhos, os espectadores cansam-se mais que os diretamente envolvidos. O motor é lubrificado de todos os lados; parafusos ocultos são afrouxados e apertados; um homem corre para o hangar, atrás de uma peça de reposição; tampouco ela se encaixa; ele corre de volta e, de cócoras no piso do hangar, martela a peça entre suas pernas; Blériot se reveza na cadeira do piloto com um mecânico, e o mecânico com Leblanc. Ora um, ora outro aplica um novo tranco à hélice. Mas o motor é inclemente, à maneira de um aluno que precisa de ajuda, a turma inteira lhe sopra a resposta, mas não, ele não consegue, emperra de novo, emperra sempre no mesmo lugar, trava. Blériot permanece um instante em silêncio na cadeira de comando; os seis mecânicos ficam a seu redor, sem se mexer; todos parecem sonhar. Os espectadores podem finalmente tomar fôlego e olhar ao redor. A jovem senhora Blériot, de feições maternais, aproxima-se, seguida de duas crianças. Quando o marido não consegue voar, ela se preocupa, e quando ele voa, ela se angustia; de resto, seu belo vestido é um tanto pesado demais para o tempo que faz. A hélice é girada de novo, talvez com mais jeito que antes, talvez não; o motor começa a funcionar como se fosse outro; quatro homens seguram o aparelho, e em meio à calmaria geral, as lufadas de vento que vêm da hélice levantam os jalecos de trabalho dos homens. Não se ouve uma palavra, o barulho da hélice parece comandar tudo, oito mãos soltam o aparelho, que corre longamente pelo terreno, como um sujeito desajeitado na pista de dança. Fazem-se muitas outras tentativas e todas acabam em nada. Todas elas levam o público às alturas, todos sobem nas cadeiras de palhinhas, sobre as quais, os braços estendidos, a um só tempo se equilibram e exprimem esperança, temor e alegria. Nos intervalos, a nobreza italiana desfila pelas tribunas. Cumprimentam-se, fazem vênias, reconhecem-se, abraçam-se, sobem e descem pelas escadas que levam às tribunas. Apontam uns aos outros a principessa Laetitia Savoia Bonaparte, a principessa Borghese - uma senhora de idade, cujo rosto tem uma cor de uva amarela-escura -, a contessa Morosini. Marcello Borghese está junto a cada uma e a nenhuma das senhoras; de longe, parece ter um rosto discernível, de perto, as faces convergem de modo estranho sobre os cantos da boca. Gabriele D?Annunzio, baixo e fraco, parece dançar timidamente diante do conte Oldofredi, um dos homens mais importantes do comitê organizador. Por cima da balaustrada da tribuna, espreita o rosto poderoso de Puccini, com um nariz que bem se diria um nariz de bêbado. Mas só se notam essas pessoas quando se busca por elas, por toda parte só se veem as senhoras longilíneas atualmente em voga, que põem todo o resto de lado. Preferem andar a sentar, suas roupas não as deixam à vontade nas cadeiras. Os rostos, sob os véus asiáticos, surgem sob uma leve penumbra. Os vestidos, soltos no torso, dão algo de vacilante a seus vultos, quando são vistas por trás; e uma sensação indefinida, inquieta se produz, quando tais senhoras vacilam! O corpete é apertado e mal se nota; o quadril parece mais largo que de costume, uma vez que todo o resto é tão estreito; mulheres assim pedem para ser abraçadas por baixo. Por enquanto, o aparelho de Leblanc foi o único a aparecer. Agora vem o aparelho com o qual Blériot transpôs o Canal da Mancha; ninguém o disse, todos o sabem. Um longo intervalo e Blériot está no ar, vê-se o seu torso ereto acima das asas, as pernas metidas fundo no avião, como se fossem parte da maquinaria. O sol vem descendo e, por entre o baldaquino das tribunas, ilumina as asas que pairam no ar. Todos miram Blériot com devoção, os corações não têm lugar para outro. Ele faz um pequeno giro e então passa quase exatamente acima de nós. E todos vêm, de pescoço estendido, como o avião descamba, é dominado por Blériot e logo ascende. O que está acontecendo? Ali está um homem a vinte metros do solo, preso numa armação de madeira, defendendo-se de um perigo invisível, enfrentado de livre-arbítrio. Mas nós ficamos embaixo, contidos e insignificantes, seguindo-o com o olhar. Tudo corre bem. O mastro de sinalização mostra a um só tempo que o vento é agora mais favorável e que Curtiss vai voar pelo grande prêmio de Brescia. Afinal, ele vai? Mal entramos em acordo e já ressoa o motor de Curtiss, mal se consegue vê-lo e ele já voa para longe, voa sobre a planície que se expande à sua frente, rumo aos bosques que só agora parecem se erguer a distância. Curtiss voa longamente sobre os bosques, ele desaparece, vemos os bosques, mas não a ele. Por trás das casinholas, sabe-se lá por onde, ele retorna, à mesma altura de antes, e avança contra nós; quando ele ascende, veem-se as superfícies inferiores do biplano que se escurecem; quando mergulha, as superiores brilham ao sol. Curtiss dá a volta ao marco de chegada e se dirige, indiferente ao alarido das saudações, diretamente ao ponto de onde veio, onde logo se torna mais uma vez pequeno e solitário. Cumpre quatro voltas assim, voa 50 km em 49? 24" e conquista assim o grande prêmio de Brescia, 30.000 liras. É um grande feito, mas grandes feitos não têm como ser avaliados, afinal de contas todos se sentem à altura de grandes feitos, grandes feitos mal parecem exigir coragem. E enquanto Curtiss trabalha lá longe sobre os bosques, enquanto sua mulher, conhecida de todos, preocupa-se com ele, a multidão já quase o esqueceu. Por toda parte só se faz reclamar porque Calderara não voará (seu aparelho quebrou), porque há dois dias Rougier só faz andar à volta de seu Voisin, porque o Zodiac, o dirigível italiano, ainda não chegou. Sobre Calderara são tantos os rumores gloriosos que seria de acreditar que o amor da nação poderia conduzi-lo pelos ares com mais segurança que seu Wright. Curtiss ainda não terminou o voo, e em três hangares os motores começam a funcionar, como que por obra da exaltação. Vento e poeira sobem de todos os lados. Dois olhos não bastam. As pessoas se viram sobre as cadeiras, perdem o equilíbrio, seguram-se em quem estiver por perto, pedem desculpas, alguém mais perde o equilíbrio, empurra o vizinho, pede desculpa. Cai o fim de tarde do outono italiano, no campo já não se vê mais nada com nitidez. No momento exato em que Curtiss passa por cima de nós, voltando de seu voo vitorioso, e tira o gorro, sorrindo de leve, sem olhar para baixo, Blériot começa um pequeno giro - não se esperava outra coisa dele! Não sabemos se aplaudimos Curtiss ou Blériot ou ainda Rougier, cujo aparelho, grande e pesado, arremete agora pelos ares. Rougier senta-se a seus manches como um homem à escrivaninha, um homem que só pudéssemos ver pelas costas, trepados a uma escadinha. Ele sobe em círculos breves, ultrapassa Blériot, faz dele um espectador e não para de subir. Se ainda quisermos conseguir uma carruagem, já é mais que hora de partir; muita gente já vai forçando caminho em meio à multidão. Todos sabem que este voo é apenas experimental, pois já passam das sete e ele não será mais computado oficialmente. Na entrada do aeródromo, os motoristas e os criados estão sentados nos carros e apontam para Rougier; na esplanada do lado de fora, os cocheiros esperam junto às muitas carruagens espalhadas e apontam para Rougier; três bondes, cheios até não poder mais, não se movem por conta de Rougier. Por sorte, conseguimos condução, o cocheiro senta-se junto a nós (não há boleia) e, finalmente de volta a nossas existências autônomas, vamos embora. Max observa muito corretamente que poderíamos e deveríamos organizar algo do gênero aqui em Praga. Não uma competição, diz ele, por mais que isso também valesse a pena, mas sim convidar um aviador, seria simples e nenhum dos envolvidos teria do que se queixar. A coisa toda seria tão fácil; Wright está agora voando em Berlim, logo mais Blériot estará em Viena e Latham em Berlim. Seria preciso apenas convencer um deles a fazer um pequeno desvio. Não lhe respondemos nada, primeiro porque estamos cansados e também porque não teríamos nada a acrescentar. A estrada faz uma curva, Rougier parece voar tão alto, que daqui a pouco seria preciso determinar sua posição pelas estrelas que começam a se mostrar no céu que se tinge de escuro. Não paramos de nos voltar; Rougier sobe mais e mais, enquanto nós nos embrenhamos na campagna.

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