O desafio de Moby Dick

Nova versão do clássico exigiu cinco anos de dedicação dos tradutores e a busca de uma linguagem à altura do tom profético de Herman Melville

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Por Antonio Gonçalves Filho
Atualização:

Num ensaio sobre Moby Dick, o clássico do norte-americano Herman Melville (1819-1891), o escritor inglês D. H. Lawrence (1885-1930) conclui, após estudar o transcendentalismo e a sensibilidade puritana americana, que o livro é uma alegoria da Paixão de Cristo, vista como o embate entre um monomaníaco e uma baleia santa. O alucinado capitão Ahab do livro de Melville conduziria para a catástrofe um navio multiétnico, afundando as esperanças da humanidade ao atacar um cetáceo que poderia ser Jesus. Lembrando que, nos primeiros séculos, Jesus , o Redentor, era Cetus, a Baleia, e os cristãos, seus pequenos peixes, o autor de O Amante de Lady Chatterley pergunta: se a Baleia Branca afundou o navio da Grande Alma Branca americana (o baleeiro Pequod) em 1851, o que tem acontecido desde então? ''Efeitos pós-morte, presumidamente.'' Consummatum est! É a conclusão de Lawrence. Não é, porém, a opinião de milhões de leitores que alimentam essa interminável discussão filosófico-religiosa a que Moby Dick deu início e prossegue com a nova edição integral da obra (656 págs., 15 ilustrações, R$ 99) pela editora Cosac Naify, primoroso trabalho de tradução que consumiu cinco anos de energia dos profissionais Irene Hirsch e Alexandre Barbosa de Souza. Após digitar mais de 200 mil palavras e 1,2 milhão de caracteres, a dupla finalmente concluiu a gigantesca tarefa de traduzir Moby Dick para o português. O resultado é desafiador. Os ortodoxos vão estranhar desde a frase inicial, em que o narrador Ishmael se apresenta - ''Trate-me de Ishmael'', em vez de ''Chamai-me Ishmael'' (Call me Ishmael), que sugere a solene invocação de um profeta -, até as bruscas mudanças de linguagem para ser fiel à polifonia do romance - afinal, são 30 tripulantes a bordo, representando os 30 estados americanos da época (hoje são 50), cada um deles simbolicamente ocupado por um estrangeiro a bordo do baleeiro multinacional. O capitão Ahab lembra Bush conduzindo o mundo ''civilizado'' contra Bin Laden e o ''eixo do mal''? Edward Said jurava que sim. Afinal, até mesmo uma profética leitura política Moby Dick comporta, considerando que a baleia já deitou nos divãs de Jung e da psicanalista Julia Kristeva e esbarrou nas escrivaninhas de Borges e Todorov, quatro dos milhares de intelectuais que se debruçaram sobre a obra-prima de Melville. A prova do dom profético de Melville, falando por Ishmael, está na página 31. Nela, o marinheiro diz acreditar que sua participação nessa viagem baleeira faz parte do programa maior da Providência. As palavras que se seguem são de arrepiar: GRANDE DISPUTA ELEITORAL PELA PRESIDÊNCIA DOS ESTADOS UNIDOS - Viagem Baleeira de Um Certo Ishmael - BATALHA SANGRENTA NO AFEGANISTÃO. Como Melville poderia saber dessas coisas há 157 anos? É provável, como observou um acadêmico, que ele estivesse se referindo às eleições presidenciais americanas de 1840 ou à sangrenta batalha entre a Inglaterra e o Afeganistão, em 1839, que deixou apenas um sobrevivente, mas o fato é que o livro está cheio de mensagens cifradas e seus personagens têm nomes bíblicos, a começar por Ishmael, filho do patriarca Abraão com sua escrava Agar. Ishmael é o narrador da história do capitão Ahab, que perde uma perna para a baleia branca e sai pelos mares em busca de vingança contra o cetáceo. Não custa lembrar que o obsessivo Ahab, causa da morte da tripulação do Pequod, ao impor sua fúria passional e missionária, é um nome tirado da tradição hebraica - um rei judeu que adorava o ídolo pagão Baal. Ou seja, Ahab é possuído por uma força demoníaca. Chega mesmo a se comparar ao arquétipo do Satã de O Paraíso Perdido de Milton. Com tantas alusões explícitas e implícitas, é natural que qualquer tradutor se afogue num oceano de referências bíblicas, literárias e históricas. Moby Dick é um compêndio simbólico que trata de temas religiosos e filosóficos discutidos, no tempo de Melville, entre transcendentalistas americanos e filósofos do romantismo alemão. O tradutor Alexandre Barbosa de Souza justifica a ausência das notas de rodapé como um maneira de evitar que o leitor seja vítima de um naufrágio intelectual. Moby Dick é um labirinto borgiano carregado de citações e referências. ''O próprio nome do narrador, Ishmael, refere-se a um renegado, alguém que diz ''você pode me considerar um excluído'', fundindo-se lá pelo meio do livro com a figura do narrador onisciente'', diz o tradutor, explicando a razão de ter evitado as notas sobre as referências bibliófilas de Melville (especialmente o Shakespeare de Macbeth) e termos náuticos do texto original, reunidos num glossário que ocupa as últimas páginas do livro. A edição brasileira traz o texto integral, ao contrário da inglesa (a primeira, de 1851), que suprimia o epílogo e algumas passagens, digamos, mais íntimas entre Ishmael e seu amigo dos mares do Pacífico Sul, o antípoda Queequeg, cujas tatuagens - e não só elas - fascinam o narrador. Como ele flutua sobre o caixão de Queequeg e sobrevive graças a ele, não raro algum militante gay levanta a bandeira de Ishmael como profeta excluído e salvo por uma história de amor, que pode ou não ser reforçada na tradução. ''Fui alertado por Irene (Hirsch), logo ao iniciar a tradução, das armadilhas que o texto tem e da maldição quase satânica que pesa sobre ele, lembrando que Ahab consagra o arpão que deve matar Moby Dick com o nome de três pagãos, durante um ritual satânico'' (capítulo 36, páginas 184 e 185). O tradutor arrisca uma leitura pessoal sobre o confronto entre o tenebroso capitão e a baleia, também interpretado como uma metafóra da luta entre o homem e a natureza. Para ele, trata-se fundamentalmente de um livro sobre o conhecimento, que traz a novidade do mundo americano e o que viria a significar essa civilização com relação ao poder e à liberdade. Já para a tradutora Irene Hirsch, que defendeu uma tese de mestrado sobre as traduções de Moby Dick - origem do projeto da atual edição -, o que menos interessava a ela eram as metáforas religiosas do livro - e mais o aspecto multidimensional da escritura híbrida de Melville, capaz de provocar diferentes leituras. ''Identifico-me com o sub-bibliotecário do início do livro, que, com um lenço estranhamente colorido, cheio de bandeirinhas, passa a vida tirando o pó dos dicionários e gramáticas e colecionando referências às baleias na literatura.''

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