O Brasil no internacional riocena

Com fama de privilegiar exterior, mostra investe em 2 grandes produções do País

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Por Beth Néspoli
Atualização:

Não raro ouve-se a queixa de que os festivais internacionais de artes cênicas brasileiros privilegiam, no que diz respeito ao investimento, os grupos internacionais, deixando em segundo plano as produções do País. Pode ser que a acusação tenha fundamento, mas jamais caberia ao riocenacontemporânea, o festival internacional de teatro do Rio, nesta sua 8ª edição que começou no dia 4 e termina amanhã. Afinal, na programação de 70 espetáculos, estão nada menos do que a montagem de Os Sertões, dirigida por José Celso Martinez Corrêa com os atores do grupo Uzyna Uzona e BR3, o mais recente espetáculo do Teatro da Vertigem, só apresentado até agora no Rio Tietê, em São Paulo, onde foi criado. Por sua grandiosidade - em muitos sentidos: de produção, estético e conceitual -, ambas têm logística complexa, envolvem equipes numerosas e exigem espaços físicos diferenciados. A preparação de BR3, por exemplo, começou há mais de um ano e incluiu até um estudo de marés, uma vez que a montagem será apresentada na Baía da Guanabara. Já as 26 horas de apresentação dos cinco espetáculos de Os Sertões, transposição cênica do livro de Euclides da Cunha, exigiram a adaptação do Centro de Ação e Cidadania, espaço que fica no bairro da Saúde, bem próximo à famosa estação de trens Central do Brasil. A montagem envolve 70 profissionais do Oficina, 47 deles atores, 5 toneladas de cenário e 2,5 mil figurinos. A organização do festival praticamente recriou o espaço cênico do Oficina, com direito à passarela com suas galerias subterrâneas e arquibancadas laterais. Mas o que de melhor que a equipe do Zé Celso recebeu, a julgar pela apresentação de A Terra, na noite de quarta-feira, foi o público carioca. Aplausos em cena aberta, muitos, e espectadores disponíveis para ?atuar?, proposta fundamental nesse espetáculo, fizeram que A Terra, a parte do livro mais difícil de transpor, por suas intrincadas descrições de geografia, flora e fauna, ?acontecesse? na interação entre espectador e espetáculo. O desejo de compreender e compartilhar levou muitos a abandonar de vez a arquibancada para sentar na pista. Zé Celso ainda aproveitou um dos momentos do espetáculo para pedir a recuperação de Canudos e apoio para o povo da região. E citou Hiroshima e Berlim para lembrar que cidades destruídas podem e devem ser reconstruídas. "Chega de massacre, sejam feitos por armas ou pela miséria", falou sob aplausos. Na variada programação do festival - performances, mostra universitária, mostra portuguesa e espetáculos de diferentes países - destacou-se o britânico Tim Crouch que trouxe dois espetáculos ao evento: An Oak Tree e My Arm. Neste último, apresentado em palco italiano, o público vê diante dos olhos um aparelho de TV à esquerda, um telão ao fundo e, no canto direito, uma mesa sobre a qual há uma câmera e um pequeno boneco de plástico. O aparato tecnológico contrasta com a forma natural com que Tim Crouch sobe ao palco para pedir às pessoas que emprestem objetos cotidianos para a peça. Canetas, livros, chaveiros, brincos estão entre os recolhidos pelo ator que os coloca sobre a mesa. Não é por acaso. A partir daí, conta uma história em que o banal e o extraordinário se atritam todo o tempo. O boneco de plástico será um menino, cuja história Tim narra como se fosse dele próprio, o que resulta num estranha qualidade de emoção, a um só tempo distanciada o suficiente para ser crítica, irônica, mas também próxima para comover. Os outros objetos recolhidos vão ganhando significados, se transformando em parentes, amigos, ambientes. Ouvimos, e vemos, a história de um garoto desamparado em sua infância no que diz respeito a estímulos, mesmo tendo família e colégio, que um dia resolve não mais abaixar o braço só para criar algo original, desafiante, que significasse superação e fizesse diferença. Ele fica assim por 30 anos, sofrendo todas as conseqüências, boas e trágicas, físicas e psicológicas, que tal ato provoca. Aí começa uma narrativa envolvente, carregada de reflexões sobre a importância, ou não, da arte, das escolhas que se faz na vida e das relações humanas. Simples e comovente, sem dúvida um dos acertos da curadoria. Embora mais tradicional na forma e na dramaturgia, Stabat Mater, um dos quatro espetáculos da mostra de teatro português do riocena vale sobretudo pelo trabalho da atriz Maria João Luís. Impressiona a partitura física e sonora que ela constrói para dar vida a uma dessas mulheres que estão na fronteira entre miséria e pobreza, e não só de bens materiais. É mais admirável ainda a forma como tal partitura fica quase invisível, sob uma verdade cênica admirável. Sob direção de Jorge Silva Mello, a atriz dá conta do desamparo dessa mulher que, numa Igreja, procura ajuda para encontrar um filho desaparecido, sem deixar de explorar o humor, presente mesmo nessa situação trágica. Simples e expressivo.

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