O autorretrato como meio de se integrar à natureza na exposição do fotógrafo Arno Rafael Minkkinen

O fotógrafo finlandês expõe, a partir de hoje, 50 fotos em que registra seu corpo nu nas mais insólitas paisagens, entre elas um precipício no Grand Cayon

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Foto do author Antonio Gonçalves Filho
Por Antonio Gonçalves Filho
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A tradição do autorretrato na história da fotografia é antiga, remontando ao ano de 1839, quando Robert Cornelius, um químico amador e entusiasta da Filadélfia, resolveu se colocar diante da câmera. De Cornelius ao narcisismo da era do selfie muitos fotógrafos exploraram a autoimagem, alguns de modo menos tímido, como o pioneiro Hipplolite Bayard, outros de forma mais performática, como Cindy Sherman. Não há, porém, um caso parecido como o do fotógrafo finlandês Arno Rafael Minkkinen, veterano de 71 anos, que abre hoje sua exposição Corpo Como Evidência, no Sesc Vila Mariana.

Arno Minkkinen: integração comnatureza passa pelo perigo Foto: Rafel Arbex/Estadão

Minkkinen sempre se fotografa nu nos lugares mais improváveis, seja à beira de um precipício ou enterrado sob a neve, testando os limites do corpo sem ajuda de um assistente, expondo-se ao perigo real. Em raras ocasiões deixou à mostra o rosto, desde que fez seu primeiro autorretrato, em 1971. O que interessa ao fotógrafo, segundo João Kulcsár, curador da mostra, é experimentar uma relacão simbiótica com natureza, atestada na maioria das 50 fotos que integram a mostra.

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Por vezes essa simbiose é tão profunda que até os bichos confundem seu corpo com outros elementos da paisagem. Minkkinen aponta uma foto em que, num exercício de contorcionismo, parece uma pedra dentro de um lago, pedra essa em que pousa uma mosca. “Só fui ver na revelação do filme”, conta. “A verdade incontestável é o negativo”, conclui, dizendo que a mosca é, desde então, a sua marca registrada, porque não havia ninguém por trás da câmera. O acaso e a espontaneidade construíram a imagem.

O fotógrafo, nascido na Finlândia, mas criado nos EUA, sempre fotografou em preto e branco. Só recentemente aderiu à foto digital e se rendeu à cor, mas jamais recorre ao Photoshop. Não manipula suas imagens. “O que acontece na sua mente pode também acontecer dentro de sua câmera”, diz ele, convicto de que ser fotógrafo é trabalhar como um documentarista a serviço da realidade. Ele pode, sim, criar imagens surrealistas com um corpo real, mas isso é consequência, não construção artificial, como Man Ray. A propósito, Minkkinen evoca uma das imagens mais célebres do dadaísta, aquela em que o francês emula os nus de Ingres (Le Violon d’Ingres, 1924), numa das fotos de sua exposição, em que quatro mãos abraçam o dorso de uma mulher nua em Malta.

Minkkinen é um apaixonado pelo corpo feminino. Além dos autorretratos, que dominam a mostra, a imagem da mulher reina em paisagens idílicas. O fotógrafo, lembra o curador Kulcsár, “constantemente se confunde com a natureza numa relação mimética”, diz, referindo-se a uma foto em que as pernas de Minkkinen parecem uma extensão de um tronco.

Para isso, ele se contorce como um artista de circo, chegando a quebrar um braço, como já aconteceu uma vez. “Minhas fotos são, de fato, perigosas, e é por isso que eu não posso expor uma pessoa ao risco de deitar num precipício”. É possível concluir que essa exposição ao perigo tenha algo de patológico, mas essa não é a visão do fotógrafo. Esse desejo de integração com a natureza, que pode ser bem hostil à presença humana, traz embutida a vontade de associar a nudez ao estado primal, edênico, em que o primeiro ser é compelido a mimetizar o cenário que vê à frente ou se manter à parte dessa beleza.

Beleza, aliás, é uma palavra que sempre fez Minkkinen sofrer, desde que nasceu com um defeito no pálato. “Eu me sentia uma afronta à natureza, incapaz mesmo de entender como a garota mais bonita do colégio se aproximou de mim um dia pedindo para sair comigo”, conta. Como o nosso pintor modernista Guignard, que adorava as mulheres, mas temia ser rejeitado por causa da fissura labiopalatal, Minkkinen encontrou na arte um jeito de lidar com o palato fendido. Guignard fez isso pintando autorretratos. Minkinnnen prepara um filme, o primeiro de sua vida.

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Ele mesmo escreveu o roteiro e deve filmar na Finlândia, em tributo à mãe. O tema do filme, aliás, é ela. Sua mãe sonhava em ter uma princesa bonita e Arno era o oposto disso. Essa, aliás, é uma história muito frequente entre artistas fixados em autorretratos. É só comparar a infância de Minkinnen com a dos fotógrafos Francesca Woodman ou John Coplans, que fazem companhia ao finlandês no livro Auto-focus”, de Susan Bright, que trata de contemporâneos.

"Alguns dizem que algumas fotos minhas lembram as de Coplans e, de fato, há muita semelhança entre este torso e o dele”, compara, apontando uma imagem que remete a uma foto icônica do fotógrafo britânico, Black with Arms Above (1984). O finlandês leva vantagem sobre Coplans, que também não fotografava seu rosto: ainda que se considere próximo dos contemporâneos – um afinidade pelo lado conceitual – é alguém que se sente guardião da tradição moderna de Edward Weston e Ansel Adams. Um bom guardião, evoque-se.

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