Museu du Quai Branly lembra a trajetória política do ex-presidente francês Jacques Chirac

Político ficou conhecido por lutar pela diversidade cultural

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Por Andrei Netto
Atualização:

PARIS - Foi preciso uma guerra mundial, a de 1914-1918, para que soldados europeus enfim convivessem no cotidiano com populações africanas e árabes em condição de igualdade. Nas trincheiras da França e da Bélgica, brancos, negros e árabes que lutavam contra o invasor alemão dividiram não apenas a ameaça permanente da morte, mas também a riqueza de suas culturas – inclusive sua arte. Graças a esse contato muito menos contaminado pelo preconceito, uma revolução cultural se acelerou na Europa: a decadência do eurocentrismo e o reconhecimento de que povos outros também tinham o que ensinar à dita civilização ocidental.

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A história dessa revolução que tomou forma no séculos 20 e, a bem da verdade, ainda está em curso, é contada agora pelo Museu de Quai Branly, em Paris, por meio da visão e da ação política do homem que fundou a instituição, o ex-presidente da França Jacques Chirac. Em cartaz até 9 de outubro, a mostra Jacques Chirac ou o Diálogo das Culturas é uma homenagem a um político que influenciou na evolução do olhar da Europa sobre as artes de povos não europeus ao longo do século passado.

“Trata-se de uma exposição sobre Jacques Chirac, mas ela se questiona sobre a diversidade de culturas e seu engajamento político em favor do diálogo de culturas e da recusa do choque de civilizações”, explicou ao Estado Jean-Jacques Aillagon, comissário da exposição e ex-ministro da Cultura do ex-presidente.

Idealizador da instituição nos anos 1990, Chirac era uma personalidade muito mais rica e interessante do que ele próprio fazia crer. Durante décadas, cultivou a imagem de um bon vivant, amante de mulheres bonitas e cervejas mexicanas – talvez porque esse personagem lhe rendesse mais empatia do eleitorado. O curioso é que, por trás do homem popular e ordinário, que não raro parecia superficial, havia um leitor inveterado e um profundo conhecedor de “artes primeiras” – aquelas produzidas ao longo da história por povos não ocidentais, que o regime nazista chegou a denominar de “arte degenerada”.

Só no fim de sua trajetória política, Chirac revelou à opinião pública seu lado mais erudito, que o faz hoje ser reconhecido na Europa como uma das personalidades internacionais que mais lutaram contra o eurocentrismo na segunda metade do século 20, trabalhando em favor do diálogo de culturas e contra a teoria do choque de civilizações. Daí a razão de ser da exposição em curso em Paris.

Para ilustrar a riqueza que por tanto tempo foi negligenciada pelo Ocidente, estão à mostra obras de arte de diferentes períodos e civilizações, como as oito estátuas Mingqis de homens nus da época da dinastia Han da China, datando de entre 206 a.C. a 9 d.C, uma estátua mágica Vili, do Congo, ou ainda uma Biwat, de Papua Nova Guiné. Também há máscaras Buaku do teatro japonês do século 18, em meio a peças contemporâneas, como Pomba, obra de Adel Abdessemed que aproxima com ironia a ideia da pomba da paz a uma bomba. Também são apresentados textos e documentos de autores decisivos para o recuo do eurocentrismo, do etnocentrismo e do racismo, como Lévi-Strauss ou Aimé Césaire.

De fato, a trajetória de Chirac mostra não apenas seu engajamento pessoal com o tema, mas também a paulatina tomada de consciência do Ocidente em relação à importância das artes primeiras. Sem surpresa, as passagens da exposição dedicadas ao político são menos interessantes diante da grandeza da segunda pauta da mostra – a luta contra o racismo, contra o colonialismo, pela autodeterminação dos povos, pela antropologia e pela etnografia. Mas os dois assuntos podem caminhar juntos, porque a paixão do ex-presidente pelo que já foi conhecido como “Terceiro Mundo” foi, enfim, genuína. “Foi no Museu Guimet”, revelou Chirac em seu livro de memórias, referindo-se a outra instituição de Paris especializada em artes asiáticas, “que eu encontrei e aprendi a amar a Ásia, descobri o gênio das civilizações majestosas, medi sua grandeza e, por contraste, o tronco etnográfico ou exótico no qual o Ocidente lhes tinha com frequência aprisionado”.

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Aniversário. A exposição também serve de pretexto para comemorar os 10 anos de existência da instituição, que agora muda de nome – passando a Musée du Quai-Branly-Jacques Chirac. Projeto do arquiteto francês Philippe Starck situado à beira do Sena, em Paris, Quai Branly abriu as portas em 20 de junho de 2006. A instituição foi concebida como um conservatório que promovesse a arte de civilizações não ocidentais, de forma a reiterar seu espaço na história da arte mundial.

O resultado dessa paixão pessoal é um museu raro no mundo por sua especialidade, que reúne cerca de 300 mil obras sobre civilizações da África, da Ásia, da Oceania e das Américas, das quais em torno de 8 mil pinturas e esculturas apresentadas na coleção História. Há ainda 10 mil instrumentos musicais, 25 mil peças de vestimentas e têxteis, 700 mil fotografias históricas e contemporâneas e 320 mil documentos, entre obras escritas, periódicos e registros audiovisuais.

Apesar do acervo impressionante, a instituição foi criticada à época de sua fundação por supostamente ter pouco apelo entre o público apreciador de arte. Uma década depois, a análise que se faz é inversa: o museu contrariou as perspectivas negativas e se afirmou na paisagem francesa e internacional, somando em média 1,35 milhão de visitantes por ano. “Nas grandes capitais culturais, há muitas vezes um grande museu de etnologia, mas ele não desempenha um papel cultural maior. Nosso desafio foi criar um museu que fosse especializado, mas que desempenhasse um papel protagonista entre os museus de Paris”, explicou ao Estado Stéphane Martin, presidente da instituição. “A chave do sucesso do museu foi sua grande liberdade de tom, a ponto de alguns antropólogos se perguntarem a qual escola Quai Branly pertence”, acrescentou.