Musa canibal inspirou os tropicalistas

Tropicália tem raízes na Semana de 22 e incorporou estilização dadaísta da cantora

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Por Antonio Gonçalves Filho
Atualização:

Num texto para o jornal The New York Times, em 1991, Caetano Veloso revelou que, em 1957, aos 15 anos, ouvia as gravações de Carmen Miranda com absoluto desconforto. As canções brasileiras, anteriores a seu desembarque nos EUA, soavam "totalmente arcaicas" aos seus ouvidos. As americanas, como South American Way e Chica Chica bom chic, lhe pareciam simplesmente "ridículas". Dez anos depois, ainda segundo Veloso, Carmen reapareceu entre seus interesses estéticos, justamente quando criava o tropicalismo, movimento cultural que a recolocou em cena. Ela ressurgiu, gloriosa, na canção-manifesto do movimento, Tropicália (1967), nome emprestado de um "ambiente" projetado pelo artista Hélio Oiticica (1937-1980)para a mostra coletiva Nova Objetividade Brasileira, realizada em abril de 1967, no Museu de Arte Moderna do Rio (MAM/RJ). Ao terminar com o brado "Carmen Miranda da-da dada", a canção de Caetano realizou o impensável: uniu o nome da cantora a outro histórico movimento artístico de vanguarda, o dadaísmo, iniciado em 1916, na Suíça, por Tristan Tzara, Hugo Ball e Hans Arp, um trio que, em matéria de transgressão, antecipou em muitos anos a postura experimental de Oiticica ao criar o ambiente Tropicália no MAM do Rio, espécie de síntese visual do Brasil. A Carmen Miranda "dadaísta" de que falou Caetano no New York Times era a grande descoberta do tropicalismo, a "caricatura" e ao mesmo tempo a "radiografia" do Brasil: uma mulher nascida em Portugal, que assumiu uma "estilização espalhafatosamente vulgar" da roupa de baiana, conquistou com seus balangandãs a nação mais poderosa do planeta, virou a mais bem paga atriz de Hollywood e ainda encarnou a porta-bandeira do Brasil. Isso era tão ilógico como um ready-made de Duchamp - aquele objeto encontrado ao acaso e elevado ao estatuto de obra de arte por vontade de seu criador. Carmen foi essencialmente duchampiana quando aceitou o estereótipo da garota tutti-frutti dos americanos, colocando sobre a cabeça um cesto de frutas tropicais. Incorporou o Brasil em gestos expansivos, paródicos, mas sorriu maliciosamente para a matula ao abrir passagem no erótico bananal de Busby Berkeley (no filme The Gang?s All Here/Entre a Loura e a Morena). A alegria de Carmen foi a prova dos nove preconizada pelos modernistas de 1922, também consumidos no banquete antropofágico dos tropicalistas que, a exemplo da cantora, canibalizaram sem pudor a força do estrangeiro, demonstrando uma liberdade um tanto incômoda para os nacionalistas. Os tropicalistas não foram dadaístas, está claro. Sua postura, sim. Foram contra o conformismo político, cultural e social. O ambiente Tropicália de Oiticica não inspirou Caetano por acaso. Foi a primeira tentativa de impor uma imagem brasileira ao contexto da vanguarda mundial da época, reproduzindo a arquitetura orgânica das favelas e oferecendo-a ao circuito de arte como um produto incapaz de saciar a voracidade consumista do colecionador burguês. Ao convidá-lo a penetrar nesse "labirinto" transclassista - um barraco com bananeiras e araras num conceituado museu burguês (o MAM) - Oiticica foi além do mito da tropicalidade, criando com o morro uma cultura miscigenada, exato como o fez Carmen Miranda quando ousou cantar samba numa época em que o ritmo era visto com desconfiança pela caucasiana família brasileira - uma "coisa de marginal", de "mulatos desocupados". Carmen não tinha nem a formação nem a consciência de Oiticica, mas propôs uma nova expressão artística com sua apropriação engenhosa da cultura estrangeira - seja copiando o terninho andrógino de Marlene Dietrich em Marrocos para cantar em Alô, Alô Carnaval, ou assumindo a mencionada coreografia reducionista de Busby Berkeley, em que surge soterrada por uma montanha de frutas tropicais - e cantando Aquarela do Brasil. Os modernistas de 1922 defenderam a estética da apropriação. Os tropicalistas de Veloso aperfeiçoaram o aproprie-e-recicle, misturando Carmen Miranda com os Beatles e Vicente Celestino. Mau gosto? A paródia e o pastiche sempre foram as estratégias de canibalização cultural deste país condenado ao futuro, em que o arcaico e o moderno convivem num mesmo corpo: o de Carmen. Pela primeira vez a vanguarda brasileira não vinha da elite, mas de um andar mais baixo (Carmen era filha de barbeiro) que, para alcançar a "altura" dos americanos, não hesitou em se apropriar da plataforma da francesa Annabella (nascida Suzanne Georgette Charpentier), a namorada de Tyrone Power, incorporada ao vestuário básico de pequena notável. A pergunta básica de Carmen devia ser "por que não?" - exatamente como na música tropicalista de Caetano (Alegria, Alegria), que, em 1967, empurrou o Brasil para a modernidade com as guitarras elétricas de uma banda de rock argentina (os Beat Boys) no conservador Festival de Música Popular Brasileira da Record. Em seu livro Verdade Tropical, Caetano fala justamente dessa prática adotada pelos tropicalistas, a de conviver com a diversidade. E como adotá-la sem derrubar as barreiras classistas e educacionais, destruindo a ordem hierárquica que faz uma cultura ser superior à outra? A reabilitação de Carmen Miranda pelos tropicalistas não foi uma concessão, mas o reconhecimento de que, antes mesmo de Oiticica subir o morro da Mangueira e comandar o trânsito interclassista, a precursora do tropicalismo já havia demonstrado sua independência ideológica, misturando culturas em seu canibal caldeirão étnico. Como toda mistura, a de Carmen pareceu inicialmente indigesta aos inventores do tropicalismo que, em 1957, estavam ouvindo os primeiros balbucios da bossa nova. Para Caetano, as harmonias sofisticadas de João Gilberto e a sintaxe elegante de Tom Jobim eram, então, o que o Brasil devia exportar, "um produto acabado e de boa qualidade", tão boa como uma escultura de Sergio Camargo. Esse era o Brasil moderno, digno da arquitetura de Niemeyer ou da tradição construtiva dos concretos, que então apresentaram a Caetano o Manifesto Antropófago (1928) de Oswald de Andrade, fazendo com que Carmen fosse reciclada. O País que perseguia a modernidade - por sua vez perseguido pelos militares - começava a pensar nela não mais como uma alienada cantora de marchinhas, mas como a representante da América do Sul que "conquistou a América branca" recorrendo à autoparódia. Carmen ganhou finalmente espaço na cultura tropicalista à medida que os mentores do tropicalismo (Caetano e Gil na música, José Celso Martinez Correa e o Oficina no teatro, Glauber Rocha no cinema) encorajaram o diálogo entre a cultura de massa e a alta cultura (a literatura dos modernistas, a poesia dos concretos). Contudo, o fenômeno da vanguarda brasileira dos anos 1960, segundo a concepção de Oiticica, não passava pela elite, mas por uma solução coletiva que não desprezasse as contribuições de índios, negros e mestiços e as formas populares de cultura - uma concepção que levava em conta a identidade nacional, até porque certos procedimentos de Oiticica visavam a contestar a hegemonia de dois movimentos artísticos internacionais vitoriosos nos anos 1960, a arte pop americana e a op art europeia. O primeiro passo de Oiticica foi criar o parangolé, justamente no ano em que o Brasil amanheceu batendo continência. Convidado pelo escultor Jackson Ribeiro a desenhar alegorias para a escola de samba da Mangueira, em 1964, ele subiu o morro e desceu de lá com a ideia de uma capa, dessas que os catadores de lixo usam para se proteger da chuva. Os parangolés seriam usados por sambistas do morro carioca na mostra Opinião 65 (em 1965, no MAM/RJ), mas a direção do museu expulsou os passistas do espaço da exposição, alegando que estragariam as obras do museu. Eles, então, foram sambar no jardim. A ideia da sociedade pluralista dançava. O parangolé ficou mesmo na alegoria, apesar de Caetano vestir essa camisa. O tropicalismo durou apenas uma temporada, de 1967 a 1968, o ano em que todos viveram em perigo. Para sobreviver, a Tropicália deveria fazer o que Carmen Miranda fez, sair pelo mundo agitando bananas ao vento. Oiticica não teve tempo e dinheiro para realizar todos os projetos públicos que queria fora do Brasil. Caetano e Gil foram presos e exilados pela ditadura militar. De qualquer modo, foi o último movimento cultural brasileiro de repercussão mundial. Pode não ter sido tão popular como sua musa canibal - afinal, Carmen Miranda é uma só. Não fez política de boa vizinhança porque nunca teve vizinhos. Carregou todos eles para dentro de sua casa - e isto não é uma metáfora - para sambar com brasileiros.

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