Mouchette e jansenismo, um desafio

Bela adaptação do livro de Bernanos por Bresson discute doutrina da graça divina

PUBLICIDADE

Por Antonio Gonçalves Filho
Atualização:

Não é a versão integral do DVD que circula nos EUA pelo selo Criterion, que traz nos extras o trailer dirigido por Godard, entrevistas com o diretor e atores do filme, comentários do acadêmico Tony Rains e, ainda, um ensaio do escritor Robert Polito. No entanto, o DVD nacional de Mouchette, A Virgem Possuída (disco único, 78 minutos, Silver Screen Collection, R$ 44,90), o mais pessimista dos filmes de Robert Bresson (1901-1999), é a mesma cópia restaurada e colocada no mercado americano como homenagem aos dez anos da morte do cineasta francês. Quem ainda não conhece, deve procurar urgentemente uma boa locadora. E, se possível, encomendar também um exemplar do livro original (a tradução está fora de catálogo) de Georges Bernanos (Nouvelle Histoire de Mouchette, Plon, 181 págs., 1962, republicado no ano passado pela BeQ). Isso porque a fidelidade de Bresson a Bernanos (de quem adaptou antes Diário de Um Pároco de Aldeia) é bastante peculiar e pode incomodar bernanosianos. Mouchette foi lançado em 1967. Poderia ser uma obra datada, mas é um clássico, frequentemente apontado como um dos cem filmes mais importantes da história do cinema. As razões são inúmeras. A mais evidente é trazer para a atualidade uma discussão antiga como o jansenismo moral de Arnauld e a doutrina da predestinação. Bernanos e Bresson dividiam sobre a espécie um pessimismo próximo dos jansenistas - é possível arriscar até mesmo uma amarga descrença nos homens, seres condenados a escapar de um erro menor para incorrer fatalmente num maior. Mouchette, no caso, seria a infeliz à espera de ser tocada pela graça ou até mesmo alguém privado dela, considerando a tragédia que é sua vida. A Mouchette de Bernanos é uma garota pobre de 14 anos, que vive com a mãe doente - em estado terminal -, o pai alcoólatra e seu irmão bebê no vilarejo de Saint-Venant, não muito longe da fronteira belga. Sua vida é um inferno. Segregada pelos colegas de escola, vinga-se deles atirando lama em seus uniformes à saída da escola. Ao chegar em casa, divide-se entre o fogão e o irmão bebê, isso quando o pai viciado não está em casa para tornar essa existência ainda menos suportável. Na sequência de abertura, Bresson antecipa a jornada de Mouchette, usando como metáfora um pássaro que cai numa armadilha, luta contra ela e é finalmente libertado por um caçador. A exemplo do bicho, também Mouchette vai se rebelar contra a armadilha social preparada pelo professor, os colegas de escola e os habitantes da aldeia, que decidem arbitrariamente a sua sorte, colocando-se no lugar do voluntarioso Deus dos jansenistas. As pequenas infidelidades de Bresson a Bernanos na primeira parte de Mouchette resumem-se à construção da protagonista segundo a concepção filosófica do cineasta, um tanto diferente das ideias religiosas do escritor, menos ligado à leitura dogmática que Jansen fez das confissões agostinianas e mais num genuíno agostinismo de raiz. Mouchette não sofre pela ausência da graça. Desenvolve-se dentro dela um rancor imenso pela falta de compaixão dos habitantes da aldeia. É, em suma, uma deslocada, capturada na ratoeira social que divide o mundo entre natureza e civilização. Tão deslocado como Mouchette é Arsène, um alcoólatra com o qual se identifica e a quem pede abrigo durante uma tempestade. Violentada por ele em sua cabana, Mouchette, ainda assim, continua a vê-lo com ternura, por ser o menos monstruoso entre tantos que cruzam seu caminho em Saint-Venant, especialmente o professor que a humilha após sua recusa em cantar (rigorosamente fiel ao personagem criado por Bernanos). Na antropologia pessimista de Bresson, não há quem possa ensinar algo a Mouchette. É uma mártir, escolhida para ser o cordeiro que há de apagar todos os pecados da comunidade mesquinha em que vive. É nesse ponto que Bresson se afasta do original de Bernanos. No livro, o suicídio surge como uma - ou a única - opção para Mouchette, enquanto no filme a morte coroa apenas sua indiferença diante da vida. Para Bresson, Mouchette oferece evidência da ausência de graça divina e do excesso da crueldade humana. É uma espécie de representação metafórica das vítimas dos campos de concentração, dos miseráveis torturados em prisões. Os colegas da escolas a desprezam, os adultos do vilarejo a agridem, o pai (ou o Pai com maiúscula) mal repara na sua existência. Mouchette poderia substituir sem grande esforço o Jó bíblico, que sofre sem saber a razão da injustiça divina e ainda assim espera a redenção. Os poucos momentos de prazer - como o encontro com um galanteador num parque de diversões - são interrompidos pela conduta abrupta do pai ou dos falsos moralistas de Saint-Venant, que identificam em Mouchette traços de uma excomungada, vítima preferencial das prescrições morais do jansenismo. Bresson não advoga uma reforma eclesiástica, mas social, pregando a liberdade do homem original contra a intolerância da doutrina teológica herdada de Port-Royal. Comunhão para todos ou o suicídio, parece bradar Bresson na sequência final, em que Mouchette, enrolada no vestido que ganhou de presente e sujou acidentalmente, rola como uma bola na ribanceira, uma, duas, três vezes, até se engolida e desaparecer na água. Bresson, contudo, estava longe de ser o advogado da modernidade. Em 1967, ele encerrou um ciclo (em preto-e-branco) de filmes sofre fé (Diário de Um Pároco de Aldeia), martírio (Au Hazard Balthazar/A Grande Testemunha) e redenção (Mouchette) para se dedicar nos últimos anos (de 1969 a 1983) a uma rigorosa crítica do hedonismo da sociedade contemporânea, estampado no seu filme-testamento O Dinheiro (disponível em DVD da Versátil). Nele, dois jovens da alta classe média passam por capricho uma nota falsa a uma lojista, que a repassa a um trabalhador - injustamente preso e transformado em assassino graças ao incidente. Não por acaso, Bresson usa Tolstoi como fonte de inspiração, outro cristão obcecado pela intervenção da graça. Godard, a respeito do colega, disse que Bresson estava para o cinema francês assim como Dostoievski para a literatura russa e Mozart para a música germânica. Se isso não serve como carta de recomendação, então parece inútil recomendar Mouchette.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.