Mostra 'Mundos Possíveis' reúne 130 obras de Hilma af Klint

Precursora da arte abstrata, pintora sueca ganha exposição na Pinacoteca

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Por Sheila Leirner
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Pouco importa se a extraordinária protagonista da exposição Hilma af Klint: Mundos Possíveis – que foi inaugurada no sábado, dia 30, na Pinacoteca, em São Paulo – seja formalmente considerada como “precursora do abstracionismo” ou se pediu para que seus trabalhos fossem revelados 20 anos após a sua morte. O que interessa e surpreende é que essa artista sueca (1862-1944), apaixonada por matemática e botânica, deu, tanto quanto Kandinsky talvez, dimensão espiritual a uma obra que, hoje, faz parte da história dos símbolos, das religiões e das transcendências.

O seu legado, assim como o de muitos artistas de seu tempo, deve ser lido à luz do simbolismo, esoterismo, ocultismo, rosacrucianismo e pensamento místico, cujo processo no fim do século 19 “coincide” com o nascimento da arte abstrata. É preciso lembrar que Piet Mondrian do mesmo modo se interessou por geometria e teosofia, pensamento cultivado por Helena Blavatsky, que coloca luz sobre a ordem universal além das aparências e do visível.

Artista. No estúdio, em Estocolmo, no ano de 1895: só foi descoberta na década de 1980, na Califórnia Foto: ALBIN DAHLSTRÖM / MODERNA MUSEET, ESTOCOLMO, SUÉCIA

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Dentro do processo dialético, a arte e a crítica americana e europeia da modernidade trouxeram, ao contrário, nos anos 1960, um olhar materialista, formalista, às vezes excessivamente redutor. Por isso, é compreensível que, apenas a partir dos anos 1980, ficaria claro que o valor de Klint não estava exclusivamente em seu “abstracionismo (ou informalismo) antecipado” e que, mesmo já tendo sido apresentada a vários museus, só foi descoberta em 1986 na Califórnia, onde a arte havia sido marcada pelo pensamento metafísico e psíquico, e onde floresciam tantas seitas e confissões místicas e religiosas.

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As raízes da abstração estão, antes de tudo, na pintura simbolista e, mais tarde, no cubismo, mas também em muitas imagens e textos que influenciaram o pensamento ocidental do século 16 ao 19, onde são constantes as figuras cósmicas, a dualidade, a vibração, a sinestesia, a geometria sagrada, os círculos mágicos em triângulos, e as referências espiritistas a “aparições”.

Como era bastante comum no período, Hilma af Klint se dedicava a sessões mediúnicas com o seu círculo de amigas e foi a partir disso que recebeu a “missão” de criar, ou melhor, psicografar uma obra e adiar a sua apresentação para quando não estivesse mais neste mundo. Naquela época, porém, o interesse pelo sobrenatural era geral e uma das hipóteses para esse fenômeno foi a dúvida crescente sobre os dogmas cristãos.

Os espíritos falavam, as mesas mexiam, os fantasmas e ectoplasmas flutuavam, os médiuns curavam, os magos e as bruxas sobravam. As imagens tornavam-se indecifráveis, às vezes cômicas, cheias de bizarrice: hibridações vegetais e animais, pictogramas... A geografia das sociedades secretas e das comunidades espíritas florescentes tornou-se complexa. A linha reta era Praga-Paris, passando por Viena, não longe de Zurique do Dada. Mas tudo levava também a Estocolmo de Klint e a Berlim, cidade de Murnau, Lang e Pabst, em direção à maior loucura da humanidade que deu poder a Hitler. 

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Mistérios. Ciências exatas como física, química, anatomia, zoologia, geologia, etc., assim como as ciências ocultas, faziam com que a pintura, o desenho, a gravura se tornassem modos de exploração a fim de dar uma forma perceptível ao desconhecido. Os artistas mais coerentes – como o suprematista Malevitch (1879-1935), o teósofo concreto Mondrian (1872-1944) ou ainda František Kupka (1871-1957), tão apaixonado pelo atomismo quanto pelo hermetismo – queriam que as suas composições fossem manifestações de uma percepção essencial do mundo.

Já as telas de Hilma af Klint – que igualmente não pretendiam ser apenas a encenação hábil ou espetacular de uma fantasmagoria ou uma alegoria – têm ligação com a magia e os mistérios do Cosmos. Estão plenas de símbolos esotéricos, figuras orgânicas, motivos geométricos e alquímicos, signos coloridos e abreviações gráficas, colocando em cena as linhas que governam o mundo: o bem e o mal, o homem e a mulher, a ciência e a religião, a matéria e o espírito. Penso que se pode duvidar bastante antes de considerá-las “abstratas”, de fato.

Nesses mistérios do oculto, outra coisa que não pode ser negligenciada é a relação entre o inconsciente e a criação artística que toca as origens e as conquistas da psicanálise: Freud em Viena, Ferenczi em Budapeste, Jung em Zurique. Vai até o espiritismo, Blavatsky e a antroposofia de Rudolf Steiner (mentor de Klint); de Goethe e do romantismo até Breton e o surrealismo, porém está presente igualmente nas outras vanguardas – expressionismo, abstração, Dada. Klint, tanto quanto Breton, praticava igualmente a escrita automática. 

“O futuro do trabalho dela é hoje”?, pergunta o vídeo promocional sensacionalista e anedótico que apresenta a exposição na Pina. Certamente não. De sua época tampouco. Ele desenvolve mitologias pessoais tão surpreendentes e enigmáticas, transmite tanta exaltação, energia e júbilo, que se aproxima da arte dos loucos ou da “arte bruta”. Da mesma forma que a arte primitiva, a obra de Hilma af Klint é intemporal.

HILMA AF KLINT: MUNDOS POSSÍVEIS. Pina Luz. Praça da Luz, 2. 4ª a 2ª, das 10 às 17h30. R$ 6 (aos sábados, entrada gratuita). Até 16/7

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