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Mostra filtra gênio de Van Gogh pela ótica de Antonin Artaud

Exposição em Paris desmonta a tese da loucura do pintor

Por Luiz Carlos Merten
Atualização:

PARIS - Até hoje o Brasil tenta decifrar o enigma de um dos artistas mais revolucionários que o País conheceu. Pense em Glauber Rocha e você provavelmente se lembrará de uma frase dele mesmo (e que o definia) - "Estão confundindo minha loucura com minha lucidez.” Talvez fosse o que Vincent Van Gogh também pudesse dizer. Uma exposição em Paris, que vai até 7 de julho no Musée d’Orsay, desmonta a tese da loucura do pintor. A exposição Van Gogh/Artaud é comissionada (como dizem os franceses) por Isabelle Cahn, que selecionou as obras com base no texto O Suicidado da Sociedade, que Antonin Artaud escreveu em 1947. As biografias mais antigas de Van Gogh associam criação artística e loucura. Biógrafos mais contemporâneos, como a dupla norte-americana Steven Naifeh e Gregory White Smith, vão na contramão dessa tendência. Eles refutam até mesmo a ideia do suicídio do pintor e sugerem, com base em investigações detalhadas, que ele teria sido morto por tiro acidental desferido por um dos filhos de uma família que conhecia, os Secrétan. Isso vai contra versões romanceadas como a do escritor Irving Stone, que inspirou o filme de Vincente Minnelli, Sede de Viver, em 1956. Nove anos antes, uma grande exposição pioneira sobre Van Gogh no Museu de l’Orangerie havia suscitado uma polêmica análise do psiquiatra François-Joachim Beer, que insistia na loucura do pintor. O fundador da Galeria Pierre, em Paris - Pierre Loeb -, considerou o texto de Beer reducionista e resolveu encomendar outro texto a Antonin Artaud, convencido de que o ator e dramaturgo ligado aos surrealistas, por ter sido internado durante muito tempo, com certeza estaria habilitado para escrever sobre a pretensa loucura de Van Gogh. Artaud, a princípio, não se interessou pelo assunto, mas terminou por se indignar com o livro de Beer - Du Démon de Van Gogh - e produziu um texto que ditou a sua assistente, Paule Thévénin, entre fevereiro e março de 1947. O livro foi publicado no fim do ano, com o título Van Vogh - Le Suicidé de la Société. Nele, Artaud acusa a sociedade de haver empurrado Van Gogh para o suicídio por indiferença ou para impedir que ele continuasse a confrontá-la com suas insuportáveis verdades. As novas pesquisas de Naifeh e White Smith não invalidam a abordagem de Artaud, que estabelece a lucidez pictórica de Van Gogh. Usando Artaud como fio condutor, a curadoria do Musée d’Orsay propõe uma viagem esclarecedora pelos quadros do pintor.

Tragédia iluminada. Texto de Artaud serviu de guia para mostra que valida lucidez pictórica de Van Gogh Foto: Reprodução

De cara, ao entrar na exposição, o espectador se defronta com uma série de autorretratos. O texto de Artaud chama a atenção para a firmeza como Vincent encara o observador. Não existe demência nem perturbação nesse olhar - como existe em autorretratos do próprio Artaud que compõem outro segmento da exposição. Há um enigma Van Gogh. Tem estimulado a obra de outros artistas. No cinema, além de Minnelli, Maurice Pialat (Van Gogh) e Robert Altman (Cartas a Theo) também tentaram iluminar nossa compreensão do gênio do pintor. Como o homem era mentalmente enfermo, seus contemporâneos terminaram por embarcar na ideia de que suas pinturas eram obras de um louco. Quem vê hoje os girassóis e os campos de trigo - ou as diversas versões do quarto em Arles - sabe que o artista é/era um gênio. Na época, tudo aquilo ainda era novo, e excêntrico. Todo o esforço de Artaud - e de Isabelle Cahn - consiste em restabelecer a lucidez de Van Gogh. Sua pincelada podia ser rápida e até furiosa - as camadas de tinta e a violência com que usava a espátula saltam aos olhos - , mas tudo aquilo obedece a um elaborado projeto. Artaud capta o movimento de Van Gogh, que saía munido de um cavalete e suas tintas, e que gostava de escolher temas e motivos ao longo dessas caminhadas. Três temas são recorrentes - os trens, a noite estrelada e os campos de trigo. São telas, a maioria, pintadas entre 1888 e 90. Van Gogh havia abandonado Paris em busca das cores quentes do sul, mas, como escreveu ao irmão, ele nunca se empenhou em reproduzir o que tinha diante de si. “Sirvo-me das cores de maneira arbitrária para poder expressar de forma mais intensa o que me angustia." As noites estreladas de Arles, onde desembarcou em fevereiro de 1888, o inspiram porque, como ele também escreveu a Theo, “estou persuadido de que o futuro da arte nova está no Midi (sul)”. Em outra carta, ao pintor Émile Bernard, ele fala de sua preocupação pela noite estrelada. “Quando farei esse quadro?”, pergunta-se. Existem duas versões - a do Musée d’Orsay é mais serena do que a que está no MoMa, de Nova York - e que ele pintou quando estava internado em Saint-Paul-de- Mausole, em Saint-Rémy-de-Provence. Ao deixar o asilo, foi seguido pelo dr. Gachet, médico experimentalista que o tratou à base de plantas (e que retratou como melancólico). Em Auvers-sur-Oise, ele pinta compulsivamente para não ficar louco, como diz. Entre 21 de maio e 23 de julho de 1890, produz dezenas de telas, e muitas reproduzem os campos de trigo. Antes disso, em 1888 e 1889, ele pinta três versões de seu quarto de pensão - O Quarto Amarelo - em Arles. A terceira versão é a definitiva e é a que está na mostra do Musée d’Orsay. O autorretrato na parede substituiu o retrato que Van Gogh havia feito do pintor Eugene Boch, no primeiro. A janela fechada não era apenas para se proteger do vento - o temido mistral -, mas reflete seu desejo de isolamento. Van Gogh, cada vez mais obsessivo e solitário, encerra-se. A cama revela seu desejo de repouso absoluto, mas suas dimensões - e forma distorcida - precedem, como um signo, a grave crise psiquiátrica que ele vai experimentar. Paradoxalmente, as cadeiras vazias representam a espera. Todo mundo sabe da ligação de Van Gogh com Gauguin. No filme de Minelli, Kirk Douglas é um Van Gogh perfeito, até pela semelhança física, mas quem ganhou o Oscar de coadjuvante foi Anthony Quinn, por seu Gauguin. Em 1888, Van Gogh constrói sua utopia do sul, uma comunidade de artistas que seduz Gauguin, mas as disputas entre ambos terminarão por afastá-los. Para punir-se, Van Gogh corta a orelha. Algumas análises tentam dar conta de um vínculo homossexual, que teria motivado a automutilação. Steven Naifeh e Gregory White Smith desautorizam a versão, dizendo que, se houve homossexualidade, era inconsciente ou sublimada. Van Gogh era hétero, e se relacionava com prostitutas. A cadeira vazia expressa, de qualquer maneira, sua eterna espera pelo retorno de Gauguin. Outro quadro reproduz a cadeira do próprio Gauguin e a análise que Artaud faz da luz diz tudo sobre a ligação dilacerada dos dois pintores. Existe somente um quadro com o motivo dos girassóis, uma tela de 1887. Como diz Artaud, pintor, e somente pintor, Van Gogh não é filósofo nem místico. Seus girassóis não são mais que girassóis, os mais belos já pintados. Isso não desautoriza quem buscar significados profundos no amarelo bronze do único girassol da mostra.

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