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Magia da bola X tédio do deserto

Rivera Letelier narra em O Fantasista sua experiência nas minas de Atacama

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Por Ubiratan Brasil
Atualização:

O sol é implacável no deserto de Atacama, no Chile, o lugar mais inóspito do planeta onde vivem os moradores de Coya Sur, uma das diversas comunidades que sobrevivem da extração de salitre. A notícia de que a mina vai fechar, no entanto, não provoca o mesmo impacto que a de que o time de futebol local vai disputar o maior jogo de sua história, contra seu principal rival. Eis o ponto de partida do romance O Fantasista, de Hernán Rivera Letelier, que a editora Rocco promete lançar amanhã (tradução de André Costa, 162 páginas, R$ 27). Letelier passou boa parte de sua existência no Atacama, trabalhando como mineiro. Mesmo sem formação acadêmica, ele trocou as salineiras pelas letras sem abrir mão das lembranças de momentos mágicos, como as partidas de futebol, diversão que se transfigurava no próprio motivo da existência. É o que acontece com a comunidade de O Fantasista, título que se justifica com a chegada de Expedito González, exímio driblador, o "fantasista do balão", que pode salvar Coya Sur de uma humilhação e garantir uma honrosa despedida em seu último suspiro. Fiel à tradição aberta por Camus, Letelier transforma uma simples partida de futebol no momento decisivo da vida de uma comunidade. Afinal, em meio a uma aridez desoladora, em um lugar no qual a finitude da existência é lembrada a cada segundo, a alegria de seus moradores, inicialmente patética, logo assume ares de vitória no sentido mais amplo da palavra. Sobre o assunto, Letelier, que jogou como goleiro e atacante nos seus bons tempos, conversou com o Estado, por e-mail. Quando o senhor descobriu que o futebol era um bom tema para novela? Quando escrevi o capítulo sobre as "peladas" de futebol no deserto, em meu livro La Reina Isabel Cantaba Rancheras. Aí me dei conta de que o tema rendia um romance. Também porque meus livros contam a vida nas minas de salitre desse deserto e ali o futebol era o único entretenimento que nos redimia do tédio planetário do deserto. As tardes infinitas dos pampas se tornavam mágicas quando, de repente, aparecia uma bola, fosse de trapo, plástico, borracha ou de couro. São muitos personagens particulares que habitam em O Fantasista. Qual a fonte de sua imaginação? Para escrever, é necessário ter experiência, intuição e imaginação, coisas que me sobram. Talvez me falte erudição, talvez eu não seja um intelectual, porém sou um homem vivido. Em uma entrevista, o senhor disse ter ficado feliz porque jogadores de futebol leram seu livro. Como foi isso? Foi a primeira vez que se ouviu jogadores de futebol falando que liam um livro. Além disso, o romance foi comentado em diversos programas esportivos, tanto na TV como no rádio. Até mulheres que não gostam, e chegam a odiar o futebol, leram com paixão. Por que a novela se passa no lugar mais inóspito do planeta, o Atacama? Porque vivi durante 45 anos nesse deserto, dos quais trabalhei durante 30 como operário. Ali me criei, ali disputei minhas primeiras "peladas", fiz meus primeiros gols, criei minhas primeiras metáforas a partir da bola de pano. É verdade que os personagens são todos reais? A maioria foi inspirada em pessoas reais. Existiram e muitos ainda sobrevivem (creio que sou um dos poucos escritores que teve a graça - ou a desgraça - de encontrar com seus personagens na rua). Sem dúvida, o trabalho do escritor consiste em transfigurá-los, em convertê-los em personagens literários. O que é mais difícil: metáfora com as palavras ou metáfora com a bola? Para ambas, é preciso ter um certo talento, ser um pouco saltimbanco, ter um pouco de palhaço, outro tanto de mago, ilusionista. Ambas são difíceis, mas nos provocam um prazer inigualável. Por falar nisso, até que ponto o futebol é metáfora da vida? Já disse Camus: o que sei da vida aprendi com o futebol. Em meu romance, é dito que ninguém sabe o que significa a alegria até marcar um gol no último minuto. Ninguém conhece o sentido da solidão até estar debaixo de uma trave aguardando a cobrança de um pênalti já na prorrogação. Em um campo de futebol, afloram os melhores valores da vida: lealdade, amizade, companheirismo, solidariedade, valentia. E também os piores: traição, inveja, violência, mentira. A desaparição do povoado parece preocupar menos os personagens, mais interessados no futebol. Por quê? Pela mesma razão que a atenção do mundo estava mais concentrada em uma Copa do Mundo que em uma guerra que destruía um país inteiro, como o Iraque.

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