Livro das Mil e Uma Noites contém o segredo da eternidade

Tradução do terceiro volume enfeixa histórias sobre viagens e as relações atribuladas entre soberano e súdito

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Por Francisco Quinteiro Pires
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Uma certeza sempre foi dada como inevitável na história da humanidade: a finitude do homem. Em qualquer lugar e em qualquer tempo, todos carregam na consciência a idéia de que o fim se consumará, apesar de não saber quando. Obviedades à parte, o que não é tão evidente é que a morte pode ser de alguma forma driblada e adiada - talvez até em definitivo. O segredo da eternidade está na literatura. Na palavra. A literatura como superação da condição humana, embora ela esteja ligada inevitavelmente ao que é humano, é o tema recorrente do Livro das Mil e Uma Noites, cuja tradução do terceiro volume, feita diretamente do árabe por Mamede Mustafa Jarouche, chegou recentemente às livrarias brasileiras. Este volume abre o ramo egípcio - dividido em antigo e tardio -, depois do lançamento dos dois tomos do ramo sírio, em 2005. Ele apresenta as viagens empreendidas por personagens que estão fazendo a um só tempo buscas de ordem material e espiritual. "Eles viajam em demanda de amor e dinheiro, o que se traduz em aventuras deflagradoras de várias peripécias", diz Mamede, professor de língua e literatura árabe na USP. O outro fio condutor das narrativas aborda o exercício de poder e os seus efeitos. "Os textos reproduzem em subhistórias a situação de Sahrazad, cuja vida está em risco devido à relação atribulada com o soberano", diz . Como Sahrazad (transcrição, adotada pelo tradutor, que se pronuncia Xahrazád), os personagens do terceiro volume protelam a morte narrando acontecimentos para aquele que os submete. A exceção está nas viagens de Sindabad (Simbá), o navegante, narrador que obriga a escuta de seus relatos em resposta à acusação de haver amealhado sua riqueza de modo injusto. Segundo Mamede, o Livro das Mil e Uma Noites tem na origem motivação política, nenhum dado aparece à toa ou tem a função pura de ornamento literário. "Por trás dos exageros e pleonasmos da narrativa, está a discussão sobre o poder, os personagens usam o recurso da palavra, que é o da inteligência, com o rei para se distinguirem dele como portadores de um outro conhecimento", diz. Mamede alerta que todos desejam ser de alguma maneira ideólogos do poder, quando não o próprio poder, ao promoverem um embate em que a arma e a arte são o exercício da narração. Por exagero, entenda-se o aniquilamento da população feminina de um reino a mando do soberano Sahriyar (pronuncia-se Xahriár), após ser traído pela mulher com um escravo. Em crise, ele vagou pelo mundo e descobriu que nada nem ninguém poderiam conter o ímpeto das mulheres. Tomou a decisão drástica de casar-se toda noite com uma mulher diferente, assassinada na manhã seguinte. Sahrazad, a filha do vizir (governador) mais importante desse reino, adota a estratégia de contar histórias que começam antes de cada noite terminar, adiando para o dia seguinte a sua execução. "Ao generalizar o gênero feminino como traidor, ele estabelece um novo contrato matrimonial, em que a tirania prepondera, tendo o extermínio físico como resultado, e isso mostra a discussão política em torno do poder", diz Mamede. Dominação essa que se apresenta com caráter variado - ela pode ser política, econômica, intelectual ou afetiva. RAMO EGÍPCIO Mamede vai dividir em dois volumes a tradução do ramo egípcio antigo, manuscritos dos séculos 17 e 18 que reúnem três blocos de noites (da 198ª à 275ª, da 176ª à 210ª e da 885ª à 929ª). "A numeração das noites é errática, não apresenta uma seqüência canonicamente reconhecida." Há passagens nas quais se sabe que a noite terminou, mas, como não são numeradas, não é possível saber qual o número da seguinte. O quarto volume, previsto para 2009, vai conter a narração de histórias de uma única noite. O egípcio tardio, que é a compilação ordenada e completa das 1.001 noites, feita a partir do século 18 no Cairo, fecha o ciclo da tradução, que pode chegar a oito volumes. "Não tenho como calcular quanto espaço vai ocupar o texto em português, e para a editora é inviável um volume com mais de 600 páginas", diz. A diferença entre tardio e antigo é essencialmente cronológica. No tardio, Mamede vai consultar edições impressas, cujas histórias diferem pouco das contidas em manuscritos. Assim, o trabalho de tradução será facilitado. A base do ramo sírio são quatro manuscritos, copiados do século 14 até o 18 nas regiões da Líbia, Síria e Palestina. Eles foram comparados com as edições impressas que apresentam versões diferentes e retocadas por editores que normatizaram a linguagem, tornando-a mais clássica e limpando-a dos matizes e dicções da língua árabe. E reúnem as histórias até a 282ª noite. O MUNDO COMO LIVRO "A nossa condição humana pede literatura", diz Mamede. Nas horas vagas, entre a universidade e As Mil e Uma Noites, o arabista da USP selecionou uma antologia com 30 contos escritos entre os séculos 8 e 12. "Histórias para Ler Sem Pressa mostram várias facetas, entre elas a histórica e a filosófica, do árabe antigo, como em O Que Diz o Peixe Frito?" Nesse conto, um sábio pergunta a um grupo de discípulos o que um peixe frito, visto em um mercado, tinha falado a eles. Espantados, eles respondem que um peixe frito não poderia ter dito nada. "O sábio ensina: o peixe diz que, levado pela gula ao ver o anzol, ele morreu e por isso foi frito", diz Mamede. A idéia dessa história se baseia num conceito medieval: as coisas do mundo falam por si, elas são portadoras de mensagens, basta saber avaliá-las. É a percepção do mundo como um livro a ser interpretado. As coisas estão onde estão por algum motivo. E, mais uma vez, o domínio da palavra possibilita à humanidade superar as limitações inerentes, inclusive a maior das suas limitações. Livro das Mil e Uma Noites Volume 3 Mamede Mustafa Jarouche (trad.) Globo, 272 págs., R$ 49 Histórias para Ler Sem Pressa Vários autores Globo 80 págs., preço a definir

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