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Independente, Iberê Camargo criou uma ética do pintar

Exposição do centenário do pintor abre nesta semana em Porto Alegre

Foto do author Antonio Gonçalves Filho
Por Antonio Gonçalves Filho
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Como indica o título da exposição, Iberê Camargo: Século XXI, que será aberta nesta terça-feira, 18, para convidados e na quarta, 19, para o público, na fundação que leva o seu nome, em Porto Alegre, não é uma retrospectiva. A grande mostra do centenário de nascimento do pintor gaúcho, morto em 1994, é, antes, “prospectiva”, segundo as palavras de um de seus três curadores, o crítico e editor francês Jacques Leenhardt. Ele e os outros dois integrantes do comitê curatorial da Fundação Iberê Camargo (o crítico Agnaldo Farias e a professora Icleia Cattani) convidaram 19 artistas brasileiros de diferentes gerações para interagir com obras do pintor selecionadas para a mostra – 33 pinturas, seis gravuras e 30 desenhos. Poucos entre os 21 trabalhos desses autores dialogam, de fato, com a obra do pintor gaúcho, figura independente na arte brasileira, avesso a movimentos e resistente a classificações.

Até março do próximo ano, o público poderá colocar à prova essa correspondência analógica entre séries de diversos períodos de Iberê – os carretéis, os manequins, as sombras, os fantasmas – e as obras dos artistas convidados, entre eles Ângelo Venosa, Carlos Fajardo, Carmela Gross, Edith Derdyk, Eduardo Haesbaert (assistente de Iberê) e Regina Silveira. Há desde ampliações gulliverianas dos carretéis do pintor pelo cearense Eduardo Frota, peças com quase 3 metros de altura e expostas na porta principal do prédio de Álvaro Siza, até ilustrações – paródicas – do carioca Jarbas Lopes das bicicletas do Parque da Redenção pintadas por Iberê Camargo. De modo geral, essas versões pouco acrescentam à compreensão da obra de um artista que não deixou seguidores e foi uma voz trágica e autônoma dentro da modernidade, encontrando raros interlocutores entre seus contemporâneos – talvez a obra de Goeldi, numa perspectiva remota.

Despedida. As telas 'No Vento e na Terra' é de 1991, última fase da produção pictórica do artista Foto: Divulgação

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Leenhardt justifica assim a opção do trio de curadores por artistas das gerações seguintes: “A presença de Iberê no panorama da arte brasileira é singular, quase sempre na contramão, se considerarmos que, em pleno período concreto, ele se voltou exclusivamente para a pintura”, observa o curador, classificando a obra do pintor gaúcho de “jansenista” – no sentido de que ela, a exemplo do movimento religioso francês do século 17, teria um caráter dogmático moral, agostiniano, de predestinação. “Ele foi uma figura que levou ao limite esse peso da tragédia, do abandono do homem à própria sorte.” Leenhardt compara o pintor a Sísifo, o mitológico rei de Éfira que ofendeu os deuses e foi condenado a rolar uma pedra eternamente até o alto da montanha. Iberê parecia condenado a pintar a própria biografia, segundo o curador, lembrando que, em 1958/59, momento em que ele abandona a paisagem e se volta para o interior do ateliê, Iberê usa os carretéis como símbolo de sua impossibilidade de caminhar. “Ele empilha esses carretéis como se fosse a sua coluna vertebral afetada”, conclui.

Com o passar dos anos, esses carretéis, equilibrados numa mesa, vão caindo e, no último período de sua vida, quando o câncer do pulmão atingiu seu cérebro, suas figuras cedem à gravidade e se entregam à terra, enquanto as bicicletas, signo do dinamismo vital, são abandonadas ou amalgamadas com as rodas de uma cadeira de paraplégico, como se vê na tela Crepúsculo da Boca do Monte. A marca da desilusão está estampada no título de uma de suas últimas telas, Tudo te É Falso e Inútil, frase do poeta Fernando Pessoa com a qual o crítico Ronaldo Brito batizou a pintura. Ou na série Idiotas, também dos anos 1990, em que ele retrata figuras limítrofes, criticando o que via ao redor. Dizia que não tinha vindo ao mundo para agradar ninguém.

Seu assistente, Eduardo Haesbert, que participa da mostra com um desenho na parede cuja aparência é de uma gravura, lembra dele de outra forma. “Iberê gostava de cinema, tinha uma coleção de filmes que adorava mostrar para os amigos.” O cineasta Joel Pizzini, autor de um curta sobre ele (O Pintor, 1995) exibe na exposição fragmentos de clássicos que Iberê cultuava – Nosferatu, de Murnau – e de um outra curta dirigido pelo fotógrafo Mario Carneiro, numa instalação que cobre todas as rampas do prédio de Siza. Também na exposição poderá ser visto o documentário Magma, de Marta Biavaschi, que destaca a relação de Iberê com a literatura, dramatizando, inclusive, um conto escrito pelo pintor em 1959, O Relógio.

Sua obra literária, assim como a pictórica, está reunida na Fundação Iberê Camargo, que tem em seu acervo mais de 5 mil trabalhos do pintor (entre telas, desenhos e gravuras). O diretor da instituição, Fábio Coutinho, calcula que existam outras 2 mil espalhadas pelo Brasil e o mundo (Iberê morou na Itália). Com a morte da mulher do pintor, dona Maria Coussirat, em fevereiro último, as obras que estavam na casa da família foram transferidas para a fundação, mantida graças ao apoio financeiro de bancos como o Itaú e empresários gaúchos como Jorge Gerdau. Com um orçamento anual de R$ 10 milhões e quatro exposições por ano, a fundação está empenhada na pesquisa para o catalogue raisonné do artista e na promoção de sua obra no exterior.

No próximo ano, revela Coutinho, serão realizadas duas exposições na Itália para comemorar o centenário de Iberê: uma em Florença e outra em Bolonha (no Museu Morandi). Em 2017, será a vez de Berlim.

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IBERÊ CAMARGO: SÉCULO 21 

Fundação Iberê Camargo. Avenida Padre Cacique, 2.000, (51) 3247-8040, Porto Alegre. 3ª a dom.. 12 h/19 h. Grátis. Até 29/3.

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