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Hitchcock e as mulheres que sofreram demais

Ele não era sádico com suas atrizes apenas, mas também com as figuras femininas de seus filmes

Por Sérgio Augusto
Atualização:

O que Alfred Hitchcock fez com Grace Kelly, Kim Novak, Tippi Hedren e outras louras e morenas atrizes de seus filmes está contado em detalhes no livro Fascinado pela Beleza, de Donald Spoto, recém-traduzido no Brasil e tema de um artigo de Luiz Carlos Merten, publicado no Cultura de domingo passado. Mas, e o que ele fez com Lisa Fremont, Madeleine Elster, Marion Crane, Marnie Edgar e outras louras e morenas de seus filmes?

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Lisa, Madeleine, Marion e Marnie não são atrizes, mas algumas das personagens de Hitchcock, talvez as mais famosas e também, com o acréscimo de mais três ou quatro, as mais representativas da obra do cineasta. Lisa é a modelo interpretada por Grace Kelly em Janela Indiscreta; Madeleine é a mulher que “morre” duas vezes em Um Corpo Que Cai; Marion é a ladra encarnada por Janet Leigh em Psicose; e Marnie, a cleptomaníaca vivida por Tippi Hedren em Marnie, Confissões de Uma Ladra.

Lisa e Marnie, afinal, se dão bem; mas Marion acaba punida pela sanha homicida de Norman Bates; e Madeleine despenca duas vezes do campanário da Missão de San Juan Bautista, a segunda com o corpo de Kim Novak. Hitchcock não era um tanto ou quanto sádico com suas atrizes apenas, mas também com as figuras femininas de suas fantasias cinematográficas. As heroínas frágeis e mesmo ingênuas, carentes de arrimo masculino, como as senhoritas de Joan Fontaine em Rebeca, a Mulher Inesquecível e Suspeita, não são a maioria na mitoginia hitchcockiana.

Nela gravitam, além das duas ladras mencionadas, pelo menos uma alcoólatra (Henrietta/Ingrid Bergman, em Sob o Signo de Capricórnio), uma doidivanas (Alicia Huberman/Ingrid Bergman, na primeira parte de Interlúdio), uma tremenda vigarista (Judy Barton/Kim Novak, a falsa Madeleine de Um Corpo Que Cai), vilãs in absentia (Rebeca de Winter) e de corpo presente (a diabólica governanta da mansão Manderley de Rebeca, a sogra de Interlúdio), e algumas caras-de-pau (destaque para Melanie Daniels/Tippi Hedren, em Os Pássaros, sem excluir desta categoria a aspirante a atriz Eve Gill/Jane Wyman, que se passa por empregada de Charlotte/Marlene Dietrich em Pânico nos Bastidores).

Acrescentem a esse grupo as mães dominadoras (ou suas substitutas), estorvo de filhas edipianas (como a segunda sra. de Winter de Rebeca, a Madeleine Elster de Um Corpo Que Cai e Marnie), noras fragilizadas (como a Alicia de Interlúdio), e sombra problemática até na vida dos filhos (como a sra. Anthony, mãe de Bruno, em Pacto Sinistro), mesmo quando interferem na trama de forma benigna, como a mãe de Frances Stevens/Grace Kelly em Ladrão de Casaca e a de Roger Thornhill (Cary Grant) em Intriga Internacional, ambas aliás interpretadas pela mesma atriz, Jessie Royce Landis.

A propósito, em que tipo de mãe se transformará JoMcKenna/Doris Day depois do resgate do filho em O Homem que Sabia Demais? (Embora a figura do pai autoritário não esteja em discussão, quatro exemplos merecem realce por sua determinante influência sobre o destino das filhas: o rigoroso patriarca de Champanhe; o falso pacifista que mete a filha numa fria em Correspondente Estrangeiro; o general McLaidlaw que interfere na vida amorosa de Francis/Joan Fontaine em Suspeita; e o “traidor da pátria” que leva Alicia a tornar-se uma Mata Hari dos Aliados em Interlúdio. Quatro dramas edipianos de uma perspectiva feminina.)

Se na primeira produção sonora de Hitchcock, Chantagem e Confissão (Blackmail), de 1929, quem mata é a filha de um lojista (Alice White/Anny Ondra), com uma faca de cortar pão e em legítima defesa, diga-se, nos demais filmes as principais vítimas pertencem ao sexo feminino. Geralmente vítimas de assédio sexual, como o estupro de que Alice White se defendeu com uma faca, e agressões físicas de todo tipo: de estrangulamentos (as viúvas assassinadas por Charlie/Joseph Cotten em Sombra de Uma Dúvida, Margot Wendice/Grace Kelly em Disque M para Matar, Miriam/Laura Elliot em Pacto Sinistro, as moças de Frenesi); facadas (a espiã nazista de 39 Degraus inaugurou a linhagem, cujo cetro pertence à infausta Marion de Psicose); tentativas de envenenamento (reais, como em Interlúdio, e imaginárias, como em Suspeita); até picadinho elas viraram (em Janela Indiscreta e Frenesi).

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O terceiro sonoro de Hitchcock, Assassinato (Murder, 1930), começava com um grito de mulher cortando a noite. Não era um grito de prazer. Em linhas gerais, já estava tudo traçado no filme de estreia do diretor, O Jardim dos Prazeres (The Pleasure Garden), rodado em 1925 e protagonizado por uma corista londrina que descobre que o marido, com quem foi viver em terras tropicais, é alcoólatra e afogou uma nativa (a primeira vítima letal do homo hitchcockianus), fazendo crer à polícia que se tratara de suicídio.

O tema do uxoricídio se insinua na trama (o marido ameaça a mulher com uma espada), além de outro, fundamental na dramaturgia hitchcockiana: o poder póstumo, digamos assim, da mulher. É a aparição do fantasma da nativa assassinada que precipita o happy end de O Jardim dos Prazeres. Ela foi a precursora de Rebeca, de Carlota Valdez (o exu de Um Corpo Que Cai) e da sra. Bates (mãe e encosto do filho, Norman Bates, em Psicose). A morte, portanto, confere poderes literalmente sobrenaturais às mulheres de Hitchcock, que do além infernizam a vida terrena de companheiras do mesmo sexo e impõem sua força, não raro vindicante, aos marmanjos, de boa e má índole.

Scottie, o detetive de Um Corpo Que Cai, é levado à loucura por uma mulher que só conhece à distância e efetivamente está morta, no mais fascinante e romântico caso de metempsicose do cinema. Apesar do que pintam e bordam, heroicamente, a modelo Pat Martin/Priscilla Lane, anjo da guarda do falso culpado de Sabotador, a Alicia da segunda parte de Interlúdio, a destemida Lisa de Janela Indiscreta, a pertinaz Jo de O Homem Que Sabia Demais e a impávida Eve Kendall/Eva Marie Saint de Intriga Internacional, prevalece entre as feministas a impressão de que as heróinas de Hitchcock só superam sua “inferioridade” em relação ao homem depois de enterradas.

The Women Who Knew Too Much (As mulheres que sabiam demais). Foi este o título que Tania Modleski deu à sua dissecação dos filmes de Hitchcock à luz das teorias feministas, tese transformada em livro no final da década de 1980. Mais adequado seria The Womem Who Suffered Too Much (As mulheres que sofreram demais), tamanha sua obsessão pelas várias formas de violência moral e física a elas infligidas “na sociedade rigidamente patriarcal” em que vivemos.

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Spoto não cita Modleski em Fascinado pela Beleza, nem se refere a outros estudos na mesma linha de Laura Mulvey, Teresa de Laurentis e Susan Lurie. Quem sabe, não se interessou pela visão reducionista das feministas; que até ao gay Robin Wood, um dos mais penetrantes hermeneutas da desconcertante e ambivalente arte de Alfred Hitchcock, causou certo desconforto. “Será possível limpar a barra de Hitchcock junto ao feminismo?”, perguntou Wood há pouco menos de 30 anos. “Que necessidade há de se limpar a barra de Hitchcock junto às feministas?”, pergunto eu. Mulvey deu a primeira estocada.

Por volta de 1973, num ensaio seminal, Prazer Visual e Cinema Narrativo, traduzido na década seguinte numa antologia da Graal (A Experiência no Cinema) organizada por Ismail Xavier, colocou Hitchcock num dos vértices do “cinema falocêntrico” produzido desde sempre por Hollywood. Utilizando a psicanálise como um instrumento político para demonstrar “o modo pelo qual o inconsciente da sociedade patriarcal estruturou a forma do cinema”, Mulvey faz observações persuasivas sobre o “controle da fantasia” dos filmes narrativos tradicionais pelo olhar masculino e sobre o erotismo sádico e escopofílico de Hitchcock, mas se perde no afã quixotesco de “destruir o prazer” proporcionado pela “manipulação habilidosa e satisfatória” dos códigos cinematográficos, abusando do jargão psi e dicotomias do tipo ativo/masculino-passivo/feminino, fetichismo-exibicionismo.

Ainda que influenciada por Mulvey, Modleski critica seu caráter monolítico. Mas, ao longo dos nove capítulos de The Women Who Knew Too Much, incorre no mesmo esquematismo. Sua análise, porém, além de mais extensa, profunda e específica do cinema de Hitchcock, tenta desfazer alguns truísmos sobre o caráter irredutivelmente masoquista das mulheres (na tela e na plateia) e a misoginia do cineasta. Para ela, Hitchcock não é nem totalmente filógino nem totalmente misógino, mas as duas coisas; logo, ambivalente - e até por isso, um dos cineastas mais complexos de todos os tempos.

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