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Gestos magnéticos que tecem doçura e dor

Maria Eugênia e Marina Abib mostram que sabem contar história

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Por Redação
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No que respeita ao acerto, elas não se enganam. Como quem jamais esquece de onde veio e por onde andou raspando seu corpo, Maria Eugênia Almeida e Marina Abib expandem o que já faziam bem. No novo espetáculo da dupla que compõe o Grupo Soma, A Última Estrada, em cartaz hoje no Sesc Consolação, elas, que já dançavam com competência, agora prenunciam que aprenderam a contar história: um casal caminha por uma trilha na qual irrompem seus fantasmas. A direção de Cristiano Meirelles, que também assina a trilha sonora, seca no ponto certo e deixa os ventos que precisam soprar trazerem as vibrações (elas se concentram em olhares que se esbarram, no fino elástico invisível que aproxima e estica as duas intérpretes). Elas tecem suas parábolas com os gestos, que entram inopinadamente, expatriados de seus berços, mas arrastando suas gêneses. Em um enlace singular, as danças populares que alimentaram Maria Eugênia e o balé que formou Marina migraram, qual semente de flor. Germinando o passado em um presente futuro, foram arando o que é local para ser estimado em outros cantos. Entendimentos contemporâneos sobre arte vão dando a liga, e tudo vai se enovelando em uma elipse que magnetiza os sentidos. E o inteligente figurino criado por Eder Lopes e Sandra Santana deixa de ser apenas figurino para ser o seu lado visível dessa elipse: estampa que o todo não existe, que se vive entre camadas que se sobrepõem/se despencam/se apoiam/se completam em misturas de memórias variadas. O figurino conversa com a trilha, que conversa com a dramaturgia, que conversa com a iluminação, que conversa com a concepção do espaço, que conversa com o que acontece nele. São dois corpos astutos, alertas, que reúnem e expandem seus saberes, agora temperados pelas novidades encontradas por aí (estiveram em andanças pela Europa e Índia). Não abdicam de sua história. Pelo contrário, acampam com ela em novos cenários, que escavam com a pontaria de um arqueólogo que sabe onde colocar seus instrumentos.

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Elas nos deixam sós, com a perspectiva de onde nos cabe olhar, sentados em uma das diversas plateias distribuídas pelo espaço. Estradas e mais estradas vão aparecendo e, como quando se viaja, há que torcer o pescoço para continuar a ver o que está passando. Dão vigência a muitos tempos simultaneamente: de um Brasil rural, cosmopolita, festeiro, religioso, erudito e popular. Em poucos centímetros de estrada, esses tempos se empurram/se sucedem/se amontoam - tal como nos faz ouvir a precisa composição de Cristiano Meirelles, com os ajuntamentos que ajusta. A polpuda transformação de Maria Eugênia e Marina, por certo, não foi coisa aprontada sem o tempero de doçura e dor. Delas exala um surpreendente tônus-caçador do detalhe que faz toda a diferença naquilo que completa. As meninas viraram forças opulentas, que explodem de formas distintas. Cada qual é também uma metade desigual da outra. E na metade que não partilha, ciciam acuradamente habilidades só suas: Marina e seu domínio dramatúrgico pespontado por intensidades e nuances que conspiram a favor de uma plasticidade que não para de se desdobrar, Maria Eugênia e a consistente versatilidade com que atravessa domínios técnicos distintos, que assenta em perfeita comunhão. As virtudes de A Última Estrada não são ralas e, neste caminho, os viajantes afortunados somos nós.

A ÚLTIMA ESTRADA Sesc Consolação. Espaço Beta. Rua Dr. Vila Nova, 245, 3º andar, tel. 3234-3000. Hoje, às 20h. De R$ 2 a R$ 10. 

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