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Exposição com obras raras marca centenário de Maria Leontina

Pintora, associada à abstração geométrica nos anos 1950, ganha mostra na Dan Galeria com trabalhos que poucos viram

Foto do author Antonio Gonçalves Filho
Por Antonio Gonçalves Filho
Atualização:

No ano em que a pintora Maria Leontina morreu, 1984, o crítico Wilson Coutinho (1947-2003), ao escrever seu obituário, lembrou que o último trabalho da artista foi dedicado a um episódio da vida de São Martinho, o padroeiro dos mendigos pintado por El Greco (em 1597). Martinho, filho de um tribuno romano, cortou certa vez um pedaço de sua manta para dar a um pedinte. Desse dia em diante, passou a sonhar com Jesus e se converteu, trocando a vida militar pela religiosa. “Esse último trabalho nos informa sobre seu sentimento de ver o mundo transfigurado, feito de beleza exigente e de intenso lirismo”, observou o crítico, resumindo, de algum modo, a própria carreira artística dessa pintora excepcional, discreta – e intimista, segundo o filho Alexandre. Ela ganha uma exposição com 73 obras (muitas delas inéditas) em comemoração ao centenário de seu nascimento, na Dan Galeria.

Tela píntada pela artista em 1957, no ano da grande exposição de arte concreta Foto: Dan Galeria

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Maria Leontina foi, sim, discreta demais. Poderia ter superado o marido, também pintor, Milton Dacosta (1915-1988), mas não era do tipo competitivo. Sua vida foi passada no ateliê. Vivia cercada de imagens barrocas, ouvindo Debussy e Satie, segundo lembra o filho Alexandre Dacosta, compositor e poeta. “Acho que meu pai, por ter saído de Niterói aos 15 anos para tentar a sorte como artista no Rio de Janeiro, tinha uma postura de ir à luta, assumindo a dianteira, o papel de patriarca”, analisa o filho. “Muita gente me diz que minha mãe era melhor pintora, mas ele construiu uma obra que, apesar das muitas rupturas, manteve sempre o mesmo rigor”, observa Alexandre.

A discrição de Maria Leontina era tamanha que Milton Dacosta (com quem se casaria em 1949) acabou fazendo sua primeira individual (em 1936) bem antes da futura mulher (a pintora estreou no circuito só em 1950, na extinta Galeria Domus, em São Paulo). Ainda assim porque a irmã, Maria Eugênia Franco, que foi correspondente do Estado nos anos 1940, praticamente obrigou Leontina a tirar da gaveta desenhos que guardava – e lá teriam ficado, se não fosse a insistência da crítica de arte.

Guache sobre papel de 1957 rejeita rigidez do concretismo Foto: Dan Galeria

É dessa época um autorretrato que está na mostra Maria Leontina: Poética e Metafísica, nunca exposto. O retrato, assim como outras telas raras e desenhos, estavam guardados no Rio com o filho Alexandre, que há anos ensaia fazer o catálogo raisoneé da mãe. O marchand Peter Cohn, da Dan Galeria, numa rápida projeção, calcula entre 2.000 a 2.500 o total das obras deixadas pela pintora. Com a valorização de seu trabalho, uma tela de Maria Leontina pode alcançar algo em torno de R$ 500 mil (um desenho é cotado por um décimo desse valor). Segundo o filho Alexandre, têm surgido muitas telas falsas no mercado, o que justifica a urgência de um raisonné para catalogar a obra da artista.

A exposição do centenário de Maria Leontina segue uma ordem cronológica. Há pequenas telas figurativas dos anos 1940, bem antes de sua primeira exposição individual, naturezas-mortas morandianas da época em que participou da primeira edição de Bienal de São Paulo (1951), telas abstratas da série Jogos e Enigmas (1954) – pinturas estruturadas com traços fragmentados –, trabalhos das séries Formas (anos 1960) e Páginas (anos 1970) e até os derradeiros, dos anos 1980, quando, já com dificuldades para enxergar devido a um derrame, Maria Leontina realiza uma série sobre papel (pastel) que dialoga com as experiências em monotipia de Mira Schendel.

Aliás, é curioso como em diversos períodos a obra das duas converge para temas filosóficos e soluções formais parecidas – é há na mostra dois óleos de 1967, que, de certa forma, antecipam a série Mais ou Menos Frutas, que Mira realizaria em 1983 como esquemas de frutas que ficam entre a figura e a abstração. Elas, que se conheciam, mas não se frequentavam, segundo Alexandre, dividiam muitas questões de ordem religiosa. “Minha mãe não era beata, mas tinha uma formação católica, por ter estudado em colégio de freiras.” Sua fé tinha reflexos no trabalho. Uma série dedicada a Sant’Ana, que iniciou em 1949, ainda no primeiro período figurativo, mostra como a pintora lidava com essa tradição. Maria Leontina não foi apenas uma visionária. Ela usou a tela como um espaço de transcendência. 

MARIA LEONTINA Dan Galeria. R. Estados Unidos, 1.638, tel. 3083-4600. 2ª a 6ª, 10h/19h. Sáb., 10h/13h. Abre hoje (26), às 19h. Até 30/11.

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