Era Uma Vez... Breno Silveira

Novo filme do diretor de 2 Filhos de Francisco mistura romance e tráfico

PUBLICIDADE

Por Luiz Carlos Merten
Atualização:

Críticos e diretores gostam de dizer que existe uma maldição do segundo filme. Se o diretor (ou diretora) teve uma estréia muito boa, coroada pelo sucesso - de público ou crítica -, será fatal uma cobrança muito grande em relação ao segundo. O ideal seria passar logo para o terceiro, evitando o estresse. Imagine o caso de Breno Silveira, que fez, com 2 Filhos de Francisco - mais de 5 milhões de espectadores -, o campeão da Retomada, período do cinema brasileiro que se inicia com Carlota Joaquina, de Carla Camurati, em 1995. Pois Breno venceu o desafio. Era Uma Vez, que estréia no dia 25 de julho, começa espetacularmente, tem um desfecho anticlimático, mas depois o diretor acrescenta uma ''pós-filmagem'' e o resultado fica mais forte, ainda. ''Eu sou assim. Começo muito bem e depois não sei terminar'', brinca o diretor, numa conversa com o repórter do Estado no café da Reserva Cultural. Breno acaba de tomar uma sopa e, na seqüência - é quinta-feira, fim de tarde -, correrá para o aeroporto de Congonhas para tomar o avião para o Rio. Durante dois dias - quarta e quinta -, ele esteve em São Paulo, promovendo exibições de Era Uma Vez para platéias de estudantes em diversas universidades. Quanto mais humilde a universidade, maior (e mais generosa) a acolhida do público. Essas exibições, e os debates conseqüentes, estão permitindo ao diretor reavaliar seu trabalho. Pois essa é outra ''maldição'' que Breno Silveira precisa vencer - muita gente (amigos, críticos, distribuidores) acha que Era Uma Vez é muito ''carioca'' e terá de vencer a resistência dos ''paulistas''. Breno saiu a campo, mas no fundo foi para se munir de elementos para afirmar o que, para ele, é uma certeza. Ele sabe que fez um filme universal. O mais emocionado e emocionante dos grandes diretores brasileiros - ''Sou pura emoção'', ele reconhece - conta agora uma história que chama de fábula, daí o próprio título, Era Uma Vez. Há cerca de dez anos, com outro título, A História de Dé, já era o filme que Breno queria fazer - que escolhera fazer -, antes de ser atropelado pelo fenômeno 2 Filhos de Francisco. A História de Dé - o personagem chama-se André - não ia para a frente. Um amigo, João Moreira Salles, sugeriu a Breno que lesse um livro cujas provas recebera. Era Cidade de Deus, de Paulo Lins, que, de alguma forma, engloba o universo de Era Uma Vez, sobre o qual Breno queria falar. Ele tentou comprar os direitos. Já haviam sido vendidos para Fernando Meirelles, que fez o filme que todo mundo sabe. ''Ainda bem - o Fernando fez uma obra-prima. Eu teria feito um filme muito pior'', reflete o diretor. Mas o episódio malogrado (para ele) de Cidade de Deus serviu para aproximá-lo de Paulo Lins, cooptado a participar de A História de Dé, que virou mais tarde Era Uma Vez. Paulo Lins ajudou a formatar a história, mas o roteiro é assinado, conjuntamente, por Patrícia Andrade e Domingos de Oliveira (o diretor). Breno transformou 2 Filhos de Francisco, que era um filme de encomenda, num projeto pessoal. Era Uma Vez é pessoal desde outros tempos (e do outro título). É sintomático que nenhum dos investidores de 2 Filhos tenha querido colocar dinheiro no novo Breno Silveira. Não adiantou muito ter feito o maior sucesso da Retomada. ''Se o filme não der dinheiro, vou ficar endividado.'' Mas pelo menos terá feito o filme que queria. Era Uma Vez, a sua ''fábula'' - só se for uma fábula ''realista'' -, tem curiosos pontos de aproximação com Linha de Passe, de Walter Salles e Daniela Thomas, que concorreu no Festival de Cannes, em maio (e recebeu o prêmio de melhor atriz para Sandra Corveloni). Ambos contam histórias de famílias multirraciais, em que o pai é ausente. Em ambos há uma mãe forte e o filho que tenta realizar o sonho de sair da exclusão por meio do futebol. A família de Salles e Daniela era multirracial desde o começo do projeto. A de Era Uma Vez virou - em função do ator, Thiago Martins. Ele foi um dos garotos da novela Belíssima, de Sílvio de Abreu, e antes que você fique pensando que Breno facilitou para a Globo Filmes, é bom saber a história completa. A família de Era Uma Vez era formada por negros. Breno procurava um afrodescendente para ser o protagonista. Thiago ficou no seu pé. Fez diversos testes, e Breno sempre dizendo ''não''. ''Você não entende. Eu sou do Cantagalo, moro na favela. Esse personagem sou eu'', dizia o ator. E Breno, ''não''. Ele não queria um ator que já havia sido de novela, branquinho, bonitinho. Sua parceira (e roteirista), Patrícia, torcia por Thiago e lhe deu a dica. O garoto chegou para o que seria o último teste - sua oitava tentativa. Breno tomou um choque. Thiago raspou a cabeça, a zero. Estava com a pele escura, tostada de tanto sol que tomara na praia. A cara estava cheia de espinhas. ''Cara, o que você fez?'', perguntou o diretor. ''Posso fazer o teste?'' Pode - Thiago não soube, mas no final do teste já havia vencido as resistências de Breno e sido escolhido. Uma crise aguda de apendicite (ou vesícula) levou o ator ao hospital. Breno ligou para ele no dia seguinte à cirurgia. ''É teu'' (o papel). A entrada de Thiago terminou fazendo toda a diferença e o filme ficou mais complexo. Tem a história da família, a do movimento (o tráfico), dos garotos que buscam outro caminho que não o da violência. E tem Romeu e Julieta - o garoto do morro que vende cachorro-quente no quiosque da Av. Vieira Souto e a garota que mora em frente, no apartamento com vista para o mar em Ipanema, o metro quadrado mais caro do Brasil. Ele a leva para sua casa no morro, ''pertinho do céu''. Ela o leva a atravessar a rua e ver como é o mundo - a praia - daquela janela de Ipanema. Ao contrário das hesitações em relação a Dé, o protagonista, Breno nunca teve dúvidas de que queria Rocco Pitanga para o papel do irmão que vai preso e sai da cadeia para controlar o tráfico na favela. Amigos - e até produtores - diziam que era loucura. Rocco, apesar da boa estampa, não seria um bom ator, não daria conta do personagem. É o papel da virada na vida de Rocco Pitanga. Ele dá conta, ao mesmo tempo sedutor e celerado, principesco e ameaçador. A mãe, Cyria Coentro, como Sandra Corveloni no filme de Walter Salles e Daniela Thomas, é de teatro. Cyria quase não fala. Seu rosto é uma máscara, poderosa. Pura dor. De todo o elenco, porém, a maior certeza de Breno era a garota. Desde que Vitória Frate fez seu primeiro teste, ele teve certeza de que havia encontrado a sua Nina, a sua ''princesa''. Depois de 2 Filhos e, agora, Era Uma Vez, Breno não tem mais dúvida. ''Os personagens, os atores abrem caminho e chegam para mim. São eles que vêm e me escolhem.'' Romeu e Julieta, você sabe como termina. A história de amor é condenada ao fracasso. Os amantes se matam, o que é outra forma de dizer que são mortos pela pressão dos preconceitos de seu meio social, de suas famílias. Assim, como existe a mãe dos garotos, existe o pai da menina - Paulo César Grande -, que precipita a tragédia em Era Uma Vez. O filme terminava exatamente daquele jeito que você pode imaginar. Breno mostrou-o ao seu pai, à sua mãe. Viu nos olhos dela a interrogação - ''O que você fez?'' Pois Breno não é um homem que feche todas as portas. Ele acredita. O importante era não trair. Nem Shakespeare nem Paulo Lins. Breno demorou um mês para achar o final certo. Ele passa pelo ator Thiago Martins, que teve sua hesitação antes de filmar a cena. É o fecho perfeito para um filme que parece que vai seguir o estereótipo do filme de favela, de tráfico, de violência, mas na verdade coloca tudo isso em xeque, em discussão. Em tempo - Era Uma Vez tem sido aplaudido nas sessões em universidades de São Paulo. Breno Silveira não faz nenhuma aposta quanto ao sucesso (ou não). Mas, pelo menos, está com a consciência tranqüila. Ele fez o filme que queria.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.