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De volta, o teatro de polêmicas

Sessão tensa de Salmo 91 faz o palco reviver seus tempos de força incômoda

Por Beth Néspoli
Atualização:

Muitas vozes vêm apontando, nos últimos tempos, a vitalidade do teatro paulistano. Arte vital é aquela que reflete seu tempo e espelha suas contradições e por isso costuma provocar polêmica. E elas não faltaram na cena paulistana nas últimas semanas. Sem dúvida, a mais intensa girou em torno da peça Salmo 91, adaptação do jornalista Dib Carneiro Neto, do Estado, para o livro Estação Carandiru, de Drauzio Varella, em cartaz no Sesc Santana, que teve sessão tensa no sábado passado, pela presença na platéia de Karina Florido Rodrigues. Ex-assessora do Cel. Ubiratan Guimarães, que comandou a operação da Polícia Militar no episódio do Massacre do Carandiru, há 15 anos, ela escreveu um texto no blog da peça protestando contra seu conteúdo e, convidada pela produção, foi conferir o espetáculo e dar sua opinião. Protestos na imprensa contra a exibição do teleteatro Billy, a Garota, de Mário Bortolotto, provocaram a mudança de horário da série de teledramaturgia da TV Cultura, para o horário da meia-noite. Na terceira polêmica, foi a vez de artistas protestarem contra o júri do Prêmio Shell pela ausência de indicações na categoria autor (leia abaixo). No caso de Salmo 91, o texto de Karina no blog contém uma acusação grave, a de que a peça faria apologia ao crime. ''''Acho que houve uma precipitação ao acusar a peça sem ter visto, daí o convite para que ela fosse ver'''', diz Claudio Fontana, o produtor da peça. ''''Karina chegou com uma comitiva, havia dois caras com caveiras desenhadas na jaqueta, onde se lia ''''lobo negro''''. Não é para ter medo?'''', diz Pascoal da Conceição. ''''Mandaram avisar que estavam ali, sentaram todos na primeira fila. Ao fim, tentou-se o debate, mas, quando ela disse que o Deputado Cel. Ubiratan era um humanista, a platéia reagiu, não teve paciência para ouvir.'''' Curiosamente, a mesma impressão de hostilidade foi sentida do ''''outro lado''''. Dona Fumio, presidente do Movimento das Vítimas de Violência pela Justiça e pela Paz, que foi ao teatro para acompanhar Karina, se sentiu intimidada. ''''Eu não tive coragem de falar ali. Não foi um debate, mas um verdadeiro ataque, as pessoas não queriam ouvir a Karina. Eu gostei muito da peça, disse isso depois em particular para o diretor (Gabriel Villela) e para o autor (Dib).'''' Dona Fumio teve seu filho assassinado aos 23 anos e, segundo ela, um dos assassinos está solto. ''''Como Karina, acho um absurdo que os nossos legisladores continuem insensíveis à violência que atinge a sociedade. Ao fim, não achei que a peça fizesse apologia ao crime, são pessoas falando de suas vidas, ninguém ali é inocente e isso fica claro.'''' Mas ela diz que ficou muito assustada com o debate que se estabeleceu. ''''Um ator foi muito agressivo. Acho que tudo ficou muito extremado, não era para ser assim.'''' Rebate Pascoal da Conceição: ''''Olha, talvez a Karina tenha boas intenções, mas há um eco em tudo isso. Eu estou com medo, de levar porrada, de sair na rua. Talvez haja boas intenções em algumas dessas pessoas. Mas o inferno está cheio delas. Minha vaidade é saber que o teatro é a casa da liberdade, que não está fechada.'''' Não é difícil imaginar que ambos os lados estavam na defensiva desde o início, atitude que não resulta em bom jogo. Evidentemente não há uma explicação simples para o ocorrido. Por que uma peça como Salmo 91, cujo tema já foi explorado pela literatura e pelo cinema provoca reações tão acirradas? A discussão não terminou no sábado. Continua pela internet e não se restringe ao blog da peça. ''''Esse debate se dá de forma tão acirrada porque toca o cerne da questão da violência'''', diz Drauzio Varella. ''''De um lado, uma sociedade vitimada, individualmente, que tem ódio dos bandidos, o que é compreensível. Do outro, um Estado incapaz de apontar solução para o problema. A violência está em cada um de nós. Somos violentos. Mas numa sociedade civilizada, cabe ao Estado cercear e punir. Quando o Estado não cumpre esse papel, é inoperante, abre espaço para esse tipo de reação, o olho por olho, o clamor por vingança.'''' Para Drauzio, que só tem elogios para a peça, o debate também é revelador da força do teatro. Não é o único que pensa assim. ''''Acho muito saudável que tal debate seja provocado por uma peça que trata de temas como justiça social e violência, e não por algo trivial como uma cena de nudez ou o escândalo de uma celebridade'''', opina o dramaturgo Sérgio Roveri. Diretor do Sesc São Paulo, Danilo Santos de Miranda estava presente naquela noite de sábado. Faz questão de lembrar que o Sesc já abriu espaço para uma peça cujos atores eram policiais, que apresentavam sua visão da violência urbana. ''''Como instituição, o Sesc cumpre sua missão que é levar ação cultural múltipla, plural, aberta e democrática à sociedade'''', diz Danilo. Múltiplas visões, sim, mas dentro dos limites da convivência harmônica. ''''Achar que a peça poderia defender a bandidagem contra a polícia é um visão ingênua, primária. O debate ali saiu truncado, mas acho que não era o espaço, teria de ser organizado de outra forma.'''' Ainda assim, o diretor do Sesc considera o balanço positivo. ''''Ao abrir oportunidade para o teatro provocar essa discussão, o Sesc cumpre uma função importante. Quando o desenvolvimento econômico gera empregos, bens materiais, riquezas, mas não vem acompanhado de igual desenvolvimento cultural, o que se prepara é uma sociedade fascista, na qual o diferente é rejeitado. Daí a importância da arte pelo trânsito - e o diálogo - que provoca entre diferentes realidades.''''

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