''Dança não é corpo só, é pensamento''

Primeira mulher convidada a dirigir o Cirque du Soleil, Débora Colker conta a aventura e explica a nova leitura de 4 por 4

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Por Marilia Neustein
Atualização:

Fala enérgica, personalidade forte, Deborah Colker não dá bola para a preguiça e menos ainda para as críticas. Quinze anos à frente da companhia de dança que leva seu nome e há dois anos e meio grudada na "ponte aérea" Rio-Montreal - para dirigir Ovo, o novo espetáculo do Cirque du Soleil -, ela se diz "cansada, mas só um pouco". Dedicada, no momento, a curtir sua primeira semana de avó - o neto nasceu sexta-feira -, assim resume os frutos da experiência diária: "Fazer dança não é corpo só, é também pensamento. É essencial que a dança se conecte com o mundo contemporâneo". E deixa uma lição: "O que é que produz um bom espetáculo? Bons ensaios." Relaxar na produção, para ela, é impensável. Bem ao contrário, compra uma batalha por dia pela renovação e quer instalar uma "febre contínua" entre os bailarinos no espetáculo 4 por 4, que comanda no Teatro Alfa. A seguir, os principais trechos da entrevista. Você mudou o espetáculo 4 por 4, de 2002 para essa montagem, sete anos depois? Eu sempre mudo. Pegar um espetáculo de sete anos atrás, que dialoga com as artes plásticas, implica a mudança do meu olhar frente às obras desses artistas. E o qual foi a diferença do seu olhar? Mexi em figurino e, coreograficamente, em várias coisas. Algumas obras eu entendo de um jeito diferente de 99, quando comecei esse trabalho. Como foi essa relação? Você trabalhou a sensibilização dos bailarinos? É um dos caminhos. Cada espetáculo que eu crio é um universo para se mergulhar. Entramos em contato não só com os artistas mas com outras obras. Afinal, fazer dança não é só o corpo, é pensamento. É essencial fazer com que a dança contemporânea se conecte com o mundo contemporâneo. E a experiência de dirigir o Cirque du Soleil? Tive grandes prazeres e grandes preocupações. Algumas vezes pensei: "Vou desistir, eles não entendem o que eu estou falando." Vivi momentos de resistência e outros de muita comunhão. E o resultado foi bacana. Para mim a coisa mais importante era deixar um pouquinho de mim lá dentro. A marca Cirque de Soleil é muito forte. E você me vê ali. Você teve medo? Sim, fiquei com medo de não conseguir fazer. Tive insegurança pela distância física, cultural, de sistemas. E também pelo porte. Na minha companhia temos 17 pessoas. No Cirque são 35, em sete línguas diferentes. É um outro comprometimento. Fora o estresse por causa da distância, durante dois anos e meio. Às vezes eles diziam "vem para cá agora" e eu tinha de bater o pé dizendo não. Quem assistir vai ver um pouco de Brasil ? Muito. E muito de Deborah Colker. Depois da grande mise-en-scène de entrada do espetáculo vem uma coreografia. Isso foi algo que eu quis. Fui questionada, mas disse: "Confiem em mim". Até o fim do espetáculo - quando há um banquete de insetos, que termina com um forró. Todas as minhas experiências estão ali. E precisa ter uma bagagem para aguentar os imprevistos. Sentiu algum preconceito por ser uma mulher ou brasileira? Preconceito, não. Existe é um problema que é mundial - uma ideia de que o Brasil é Terceiro Mundo. Mas comigo não tem essa. Às vezes eles vêm com aquela coisa de "a gente sabe fazer". Aí eu disse: "Eu também sei?. E tudo muito profissional. Como vê a formação do bailarino brasileiro atualmente? O Brasil sempre exportou bons bailarinos. Mas percebo as coisas se desenvolvendo. O entendimento do que é uma escola, em que se trabalham coisas específicas, como graduação e técnica. Na minha escola, por exemplo, temos aulas importantes para a formação de um bailarino - história da arte, história da dança, anatomia, filosofia. Não são diretamente ligadas ao corpo, mas ao pensamento e à construção de uma pessoa. Quais são, para você, os maiores desafios para gerir uma companhia de dança no Brasil ? Meu desafio é muito pessoal. Sou uma diretora e coreógrafa muito presente na rotina do grupo. Meus bailarinos ensaiam sete horas e 45 minutos por dia, todo dia. O maior desafio é estimulá-los. Afinal, o que é que produz um bom espetáculo? Bons ensaios. Aula não é aquecimento, é um esforço permanente para desenvolver técnicas cada vez mais sofisticadas. Isso é que vai dar ao dançarino uma liberdade expressiva, que se manifesta no palco. Eu acordo todos os dias pensando em manter a febre nas aulas. O que você acha da crítica de dança? Não estou nem aí para crítica. Mas eu acho que ela é muito pouco diversificada. Olha sempre pelo mesmo viés. Seu estilo já foi chamado de "virtuosismo atlético". É uma boa definição? Hoje eu entendo isso melhor. Meu trabalho tem uma particularidade que é o fascínio pela relação entre movimento e espaço. Meus bailarinos dançam entre 90 vasos, isso não é convencional. Esse fascínio pelo espaço diferente faz com que a gente encontre uma resposta física para essas gravidades. Isso implica em um novo repertório de movimento e qualidade do corpo. Mas a minha companhia faz aula de balé clássico e dança contemporânea todos os dias. O fato de sermos atléticos depende das propostas dos espetáculos. Você já afirmou que a Petrobrás é seu "Ministério da Cultura". Como está a atuação do Ministériotual? A Petrobrás é uma patrocinadora importante. Está comigo, desde o início, há 15 anos. E investe em projetos grandes de longo prazo. Isso é Ministério da Cultura. A gente tem que crescer no investimento cultural. É claro que há pequenos grupos importantes, mas existem coisas que dão visibilidade, estímulo. Reconhecimento dentro e fora do País. Pensa em realizar algum trabalho com bailarinos não profissionais? Tenho um projeto na minha escola. São 13 bailarinos selecionados em várias ONGs de dança. Fiz um teste grande, avaliei o nível técnico de balé clássico,dança contemporânea, perfil social e personalidade. Vai resultar em um espetáculo. Você acredita que o ser humano foi feito para ficar na ponta do pé ? Metaforicamente, acho que sim. Na ponta do pé ele fica delicado, atento. Tem que usar o pensamento junto ao corpo. Esse éo ser humano: tem a explosão, as intuições, a fúria do movimento e o pensamento. Na ponta do pé, esse ser caminha com atenção e qualidade. E qual será o próximo espetáculo? É muito cedo para falar, mas posso adiantar que segue o caminho que eu comecei a trilhar com o Nó, que fala sobre a condição humana. Mas vou colocar elementos narrativos.

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