Da formação da língua à criação do romance moderno

História do idioma começa há quase três mil anos e se mistura às flutuações políticas

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Por Alberto Mussa
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Há quase três mil anos, mais precisamente em torno de 800 antes da nossa era, os habitantes do sul da península arábica desenvolveram uma escrita alfabética, composta por 29 consoantes, cuja conexão com os antigos alfabetos semitas é bastante evidente. Decifrada em meados do século 19, a língua escrita com este alfabeto revelou não apenas pertencer à família semítica, mas também ser muito semelhante ao árabe clássico. Ficava, assim, ratificada (segundo um critério de verdade ocidental) uma antiqüíssima tradição dos povos do deserto sobre sua própria constituição histórica, preservada oralmente. Os primeiros árabes emergiram no Iêmen, a terra da rainha de Sabá - região da península que não é deserta e era rica em incenso, mirra, ouro, resinas e especiarias. Viviam em cidades, com grandes diques (para armazenar água das chuvas) e canais de irrigação. Como os fenícios, foram grandes navegantes. E atravessavam o deserto com suas caravanas, chegando ao Iraque, à Síria e à Palestina. Num momento indeterminado da história, as cidades do Iêmen sofreram um grande colapso e grande parte da população migrou para o deserto. Nesse processo, a língua dos recém chegados se impôs à dos nômades preexistentes; e nesse contato se modificou. No século anterior ao surgimento do islamismo, as tribos beduínas sabiam se reconhecer como de árabes puros (originários do Iêmen) ou de árabes "arabizados" - ou seja, primitivos não-árabes que assimilaram a língua e a cultura dos iemenitas. Infelizmente, não conhecemos nada da primitiva literatura árabe. O que nos restou do antigo alfabeto de 29 consoantes são documentos epigráficos: inscrições votivas, comemorativas, funerárias. A língua que chamamos "árabe clássico", de 28 consoantes e caracteres cursivos - o árabe que Maomé falava- é precisamente o idioma modificado pela influência dos não-árabes: o profeta era de uma tribo "arabizada". É nessa língua que a literatura árabe faz sua entrada na história; e o Alcorão é seu texto fundador. O Livro Sagrado, contudo, não foi escrito por Maomé. Foi justamente pela necessidade de preservar a palavra divina das flutuações da oralidade que os primeiros califas decidiram escrevê-lo. O atual alfabeto árabe - que se inspira nas letras aramaicas e não na antiga escrita do Iêmen - começou a se desenvolver no século 6 da nossa era, na Síria, tomando sua feição definitiva no período islâmico, para dar forma fixa ao Alcorão. No período pré-islâmico, o principal gênero literário era a poesia; e seus mais característicos e belos exemplares constituem a famosa coleção al-Muallaqat (Os Poemas Suspensos), compostos pelos beduínos numa língua formal e sofisticada, que diferia um pouco dos vários dialetos tribais, fossem de "puros" ou de "arabizados". Talvez a poesia nunca tenha deixado de ser o gênero por excelência da literatura árabe. No segundo período histórico - que vai da morte do profeta, em 632, à deposição do último califa de Damasco, em 750 -, os poetas mantêm certa feição beduína. Mas despontam alguns gêneros importantes: as coletâneas de Hadith, ditos e exemplos do profeta, que trazem toda a sofisticação da antiga tradição sapiencial e proverbial, além das primeiras experiências narrativas, como as biografias de Maomé e as compilação de lendas pré-islâmicas. É com a transferência do califado para Bagdá que a literatura árabe alcança o apogeu. Nesse período - que dura até a invasão mongol em 1258 -, o árabe se consolida, suplanta definitivamente o grego, o aramaico e mesmo o persa (que só mais tarde teria um renascimento). Árabes já não são mais aqueles que podem reivindicar ascendência beduína mas, sim, todos os que têm o árabe como língua materna. As culturas milenares do Oriente Médio se fundem numa única cultura - que é essencialmente árabe. Impossível traçar um resumo da literatura dessa época: a poesia deixa o ambiente do deserto e passa a freqüentar a corte refinada dos emires; o rico estilo anedotário das lendas beduínas se torna a base das grandes obras históricas, como As Pradarias de Ouro, de Massúdi, ou de certos livros de caráter quase enciclopédico, como O Livro dos Avaros, de Jahiz - pertencentes a um gênero conhecido por Adab, ou seja, "literatura". São também desse período as deliciosas Maqamat, contos cujos protagonistas são mendigos que ganham a vida por força de sua retórica, cheias de duplo sentido e jogos de palavra; importantes obras que mesclam ficção e filosofia, como A Epístola do Perdão, de al-Maarri, provável fonte da Divina Comédia; narrativas que mais tarde seriam incorporadas às Mil e Uma Noites, como os livros de Sindabad ou Aladim; e os "romances de cavalaria", como a Sirat Antar, cujo argumento foi reproduzido no El Cid espanhol. A partir de 1258 e particularmente desde a ascensão dos otomanos, em 1517, a literatura clássica entra em declínio. É claro que continuam a surgir algumas obras-primas, como os livros de viagem de Ibn Battuta, Os Prolegômenos, de Ibn Khaldun, as ampliações das Mil e Uma Noites. Todavia, já não havia um único "estado" árabe. O antigo califado com sede em Bagdá vinha se fragmentando, desde o século 11, em pequenos reinos independentes - até que a maior parte de seu território acabou repartido em províncias do império otomano. FRAGMENTAÇÃO O árabe clássico subsistiu como língua escrita; mas as variantes regionais da língua falada começaram a se diferenciar. Hoje, os árabes vivem uma autêntica diglossia: falam "árabes" regionais, que não necessariamente se intercomunicam; e empregam o idioma clássico na literatura, na imprensa, nas transmissões de televisão ou então em ocasiões formais. Em meados do século 19, intelectuais árabes, particularmente egípcios e libaneses, promoveram uma espécie de Renascimento das letras clássicas, a al-Nahda. Eram homens cultos e já fortemente influenciados pela cultura literária do ocidente. Dois fatores - a fragmentação lingüística e a cultura européia - impediram de certa forma um pleno Renascimento clássico: o romance europeu não se encaixava no padrão dos velhos gêneros e exigia muitas vezes a coloquialidade nos diálogos. Em 1913, o escritor egípcio Muhammad Haykal publica o romance Zaynab, que é considerado o marco da moderna ficção árabe: tema árabe com tratamento europeu. Seria o padrão do século 20. Alberto Mussa é tradutor e escritor, autor, entre outros, de O Enigma de Qaf, Elegbara e O Movimento Pendular, entre outros

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