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Curador do Museu de Arte Moderna de NY fala sobre Lygia Clark

Da geometria à arteterapia, obra da brasileira é desafio nos EUA

Por Camila Molina
Atualização:

Desde sua inauguração, em maio, a retrospectiva Lygia Clark: O Abandono da Arte, 1948-1988 vem celebrando a produção da artista brasileira em uma das principais instituições do mundo, o Museu de Arte Moderna (MoMA) de Nova York. "Lygia criou um buraco crítico dentro da arte", avalia o venezuelano Luis Pérez-Oramas, curador, ao lado de Connie Butler, da exposição, que fica em cartaz nos EUA até 24 de agosto. Responsável pelo departamento de arte latino-americana do MoMA, Oramas, que também assinou a curadoria da 30.ª Bienal de São Paulo, em 2012, e prepara uma grande exibição de obras do uruguaio Joaquín Torres García, concedeu a seguinte entrevista ao Estado sobre a reverberação da mostra da mineira.Qual o impacto já perceptível da exposição? Como o público tem visto a obra de Lygia Clark? Posso encontrar três níveis de recepção que são interessantes. Primeiro, de um público inteirado, não necessariamente imerso na questão da arte brasileira ou latino-americana, mas suficientemente apto a saber que Lygia Clark é uma figura importante. É um público curioso e crítico das narrativas estabelecidas, são jovens artistas, historiadores de arte, colecionadores, galeristas, e é uma recepção fantástica, porque as grandes transformações da obra de Lygia são apresentadas em coordenadas mínimas. Uma segunda parte dos visitantes é interessada pela questão da arteterapia, da participação na estética relacional. E um terceiro nível se faz de um público que tem muita dificuldade de compreender que a narrativa da arte moderna da segunda metade do século 20 é mais complexa do que se está acostumado. Estes ficam desafiados ou decepcionados porque o trabalho da artista não é uma obra-espetáculo.Como avalia a posição atual da artista no mercado de arte? De que maneira a retrospectiva pode influir na crescente valorização de suas obras? A importância de Lygia não é nova. Não estamos inventando a roda. Mas a ressonância internacional dessa consciência, que em determinado momento era somente brasileira, depois, latino-americana, coincide com o momento particular de intensidade do poder econômico no Brasil. A constituição de novas fortunas, a consolidação do mercado de arte interno no Brasil e de algumas instituições artísticas, o aparecimento de novos colecionadores, e, além disso, o interesse internacional por arte brasileira, o que inclui o de museus como o MoMA. Isso oferece um emolduramento ideal para que um artista, cuja significação ninguém duvida, seja objeto de uma revalorização dramática no mercado e alvo de especulação. Além disso, Lygia não produziu enormemente, o que faz sua obra ser mais procurada. Entretanto, o valor de sua obra é mediano em relação a seus equivalentes no mercado americano. Quanto custa Ellsworth Kelly? Ou até artistas mais jovens? Compare Jeff Koons com Lygia Clark. E quando se acha que US$ 5 milhões é uma enormidade para um quadro de Lygia, lembre o que se pagou pelo último tríptico de Francis Bacon. O mercado brasileiro é diferente do internacional, mas é poderoso. Mas se vamos julgar a questão do valor intrínseco, compare Barnett Newman com Lygia Clark.

"A Casa é o Corpo". A instalação de 1968 em Nova York Foto: Thomas Griesel/The Museum of Modern Art

É possível falar de uma maior legitimação da artista por causa da mostra no MoMA? No sentido de colocar sua obra no mercado? Depende. Por exemplo, participei da exposição do (pintor e escultor venezuelano) Reverón aqui, mas não significou. Acho que os valores de Lygia vão continuar se consolidando, inegável que o fato de ela ser exposta no MoMA produz uma inflexão favorável, mas esse assunto começou antes dos preparativos da mostra aqui. Agora se fala da grande exposição de Hélio Oiticica que está sendo preparada em Chicago e imagino que aconteceu o mesmo com Lygia Pape com sua mostra em Madri. Estas instituições têm potência de inscrição de uma obra no contexto da arte, no mercado, no colecionismo, e também tendem a canonizar. E como o humano sempre vai pela solução de maior facilidade, o cânone fica incomparavelmente mais reduzido que a realidade. Tenho escutado de colegas brasileiros e de críticos que estou construindo um cânone da arte brasileira que passa somente pelo neoconcretismo e é verdade até certo ponto. Acho importante, mas lamentavelmente difícil, porque aparentemente o mercado e o mundo intelectual que se mobiliza por modas intelectuais não acha 'sexy' revisar a modernidade mais antiga brasileira dos anos 1920 e 30.

Lygia Clark vem celebrando a produção da artista brasileira em uma das principais instituições do mundo, o Museu de Arte Moderna (MoMa) Foto: Associação Cultural O Mundo de Lygia Clark

Por que acredita que o pintor Alfredo Volpi não atinge grande visibilidade internacional apesar da intensa mobilização de colecionadores brasileiros e instituições em torno de sua obra? Adoraria fazer uma mostra de Volpi. É um artista extremamente sofisticado, mas menos abrangente que Lygia Clark e Hélio Oiticica porque Volpi é basicamente um pintor das formas. As questões implicadas por sua obra são mais específicas, menos relacionadas com a questão da existência humana e das condições atuais. Acho que Lygia fala para nós hoje em um mundo onde a inflação de informação está desafiando a condição humana, a capacidade orgânica de elaboração da informação, quase até o ponto de pensarmos que sofreremos uma mutação. O fluxo de memória artificial ao qual confrontamos dia a dia está acompanhado de uma epidemia enorme de memória natural no mundo da informação suplementar e o mundo do Alzheimer. Uma obra que começa falando da "nostalgia do corpo", como a de Lygia, é fundamental na era da informação cibernética, do mundo virtual e da aniquilação da experiência social através da rede social. Uma obra de Lygia se coloca quase como uma verdade universal. E uma obra de Volpi se coloca sempre como um assunto íntimo. São diferentes naturezas. Mas seria importante revisar a Semana Modernista, Vicente do Rego Monteiro, Tarsila, Anita Malfatti.

Bichos e outras peças da artista na exposição Foto: Thomas Griesel/The Museum of Modern Art

Houve, no Brasil, críticas quanto ao título da mostra, o Abandono da Arte. Acha que poderia ser um mal-entendido? Tínhamos muitas dúvidas sobre o título, falava com Connie (Butler) que seríamos crucificados. É preciso dar conta do público. Gostaria de significar muito mais claramente que a negação é parte da arte, que a operação negativa é produtiva. No final, Lygia Clark fala da ideia de "produzir não-arte dentro da arte". Escreve isso. Na verdade, ela criou um vazio crítico dentro da arte, vazio no sentido de buraco, esvaziou a ideia de arte como uma operação concebida e estritamente determinada para a produção do objeto sublime. Refuncionalizou o objeto artístico. Quando Lygia escreve uma carta para Mondrian, em 1959, diz: "Se sua arte vai me servir para algo, será como o pedaço de carne crua que coloco no olho inchado para ver de novo. O abandono da arte em Lygia não é o fim da arte. Ela diz que precisava abandonar a necessidade de expressar. E se voltou para a terapia. Lygia teve coragem de colocar o não, de observar as costas das coisas, o que está detrás do quadro, do corpo e da memória.

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