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Cruzamentos culturais

Por Matthew Shirts
Atualização:

Durante alguns meses, no fim da década de 1980, vivi no porão da casa do lendário historiador Richard M. Morse. Saí daqui, do Brasil, para trabalhar como seu secretário, motorista e ajudante geral em Washington D.C. Já havia sido seu aluno, na Califórnia. E, enquanto não chegavam minha mulher e meu filho, mantidos em São Paulo pela burocracia da imigração americana, fui ficando ali no porão da casa dele. De manhã, ia trabalhar com Doctor Morse, como o chamava, levando-o, de carro, até o centro de estudos Woodrow Wilson, perto do Capitólio, no edifício conhecido como ''''o castelo'''' (dizem que Abraham Lincoln assistia das suas torres às batalhas da Guerra de Secessão). Estacionávamos no Museu da Aviação e do Espaço. Para chegar ao escritório, era preciso atravessar toda a história dos aviões americanos, dos irmãos Wright à chegada na Lua. Durante o expediente, promovíamos, eu e o Morse, o estudo da América Latina. No fim do dia, passávamos pelo supermercado para comprar os congelados do jantar e, por vezes, uma garrafa de vodca, que ninguém é de ferro. (Meses mais tarde, quando perguntaram, americanamente, a meu filho Lucas, então com 3 anos, o que fazia seu pai, respondeu: ''''Ele conversa com o Morse.'''') No porão, recebia visitas de intelectuais ilustres da América Latina. Eram amigos do Morse que, de passagem por Washington, não perdiam a oportunidade de consultar o professor. Como as conversas iam até de madrugada, acabavam dormindo ali mesmo. Lembro-me, em particular, do Enrique Krauze, destacado integrante do grupo mexicano Vuelta, liderado pelo poeta e ensaísta Octavio Paz. Enrique passou uma semana no porão e, sempre que lhe dava na telha, subia até o escritório do Morse, no andar de cima, para perguntar-lhe sobre filósofos europeus do século 19 e assuntos correlatos. Ficou decepcionado, arrasado mesmo, quando lhe sugeri, não me lembro do motivo, que uma das suas cantoras brasileiras favoritas talvez não fosse estreita seguidora do heterossexualismo. Percebi que estragara uma das fantasias da sua adolescência. Arrependi-me de ter cometido uma fofoca. Sinto uma ponta de culpa por isso até hoje. Para quem não sabe, Richard M. Morse é o autor de O Espelho de Próspero, livro clássico e denso sobre as raízes culturais da América Latina. Amigo de Sergio Buarque de Hollanda, Florestan Fernandes e Antonio Candido, entre outros grandes intelectuais do País, era crítico dos chamados brasilianistas, especialistas em Brasil formados pelas universidades americanas depois da revolução cubana, e da geração dele, mais romântica. Morse respeitava o trabalho de alguns deles, mas os considerava presos ao empiricismo anglo-saxônico, incapazes, a seu ver, de compreender a riqueza da vida ao Sul do Equador. Dizia de um ou de outro desses acadêmicos que era competente, mas que ''''não entendia'''' - em inglês, ''''he doesn''''t get it''''. Lembrei-me do Morse, com saudades, na semana passada, ao ler no número inaugural da revista Brasileiros um perfil do escritor americano Gay Talese, inventor do novo jornalismo. Talese e Morse nada têm a ver um com o outro. Não sei nem se Morse chegou a conhecer a obra de Talese, apesar da fama deste último, que goza status de astro literário americano desde a década de 1960. A mim, nunca o mencionou, pelo menos. Mas sou fã de Talese e discípulo do Morse e tenho certeza de que este teria recebido com entusiasmo a análise que o jornalista faz da cultura brasileira. Tomo a liberdade de reproduzi-la do belo perfil, feito por Jorge Pontual. Conta Talese, da sua única visita ao País, em 1998: ''''Só fui ao Rio, que é uma das cidades mais sofisticadas que já conheci. Os brasileiros me impressionam pela mistura democrática de cores. Não é como esta América dos três S: segmentada, separada e segregada. Os brasileiros têm um espírito de aventura nos cruzamentos culturais e o resultado é uma beleza que não vejo em nenhum outro país da América Latina. Na Europa, nem se fala. Vou à Dinamarca e vejo em toda a parte a mesma pessoa. No Brasil não. Os brasileiros são voltados para fora, não para eles mesmos. Têm intimidade com o Outro.'''' De onde se pode concluir que, para o bom observador, uma visita basta.

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