Com 2666, um anti-romance policial

Última obra de Bolaño, recém-publicada na Espanha, nos coloca um enigma: como esse cara consegue contar tantas histórias?

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Por Ronaldo Bressane
Atualização:

Para qualquer escritor, a leitura de um romance como 2666 é uma sonora humilhação. Já começa pelo número de páginas: 1119, na versão tijolo da Anagrama. Ignácio Echevarría, crítico, organizador da obra do chileno e seu amigo, explica que Bolaño queria que a obra fosse publicada em 5 tomos, conforme planejou. Levando em conta a amplitude do texto, Echevarría e os herdeiros, à Max Brod, preferiram publicar o romanção num tomo só. Bolaño queria que seus filhos ganhassem os direitos de cinco livros, em vez de um só. Pode-se criticar o editor e os herdeiros pelo peso da obra, mas diga-se que tiveram certa razão: as cinco partes de 2666 estão de tal modo interligadas que não é possível imaginar cinco romances estanques. Bolaño escreveu 2666 no fim da vida, durante crises hepáticas que lhe causavam fortes dores. Conforme contou Rodrigo Fresán, durante passagem pelo Brasil após a última Flip, Bolaño temia ser internado, acreditava que sua ida a um hospital seria fatal, e aí não concluiria sua obra - o que aconteceu. Conforme conta Fresán, ele escrevia 30 páginas numa tarde, e às vezes, dias e dias sem parar, só se levantando para ir ao banheiro ou comer. Desta incansável rotina já se entende um dos significados da obra: uma luta contra a morte. Morte que é o eixo da quarta seção do romance, La Parte de los Crímenes. Aqui, Bolaño empreende um obsessivo exercício: a recriação de um interminável desfile de assassinatos e violações contra as mulheres da cidade imaginária de Santa Teresa (o autor se inspirou nos crimes contra mulheres acontecidos em Ciudad Juárez), metrópole industrial mexicana fronteiriça com os EUA e encravada no deserto de Sonora, paisagem do romance Os Detetives Selvagens. São dezenas de mulheres pobres, mortas selvagemente, muitas anônimas, que surgem para em seguida desaparecer em relatos secos. Impossível não se recordar dos crimes contra mulheres cometidos pelo príncipe Shariar nas Mil e Uma Noites. Mas nada Bolaño explica dessas mortes e qual sua relação com certo Benno von Archimboldi: apenas narra para driblar a morte, como Sheherazade. O sujeito de curioso nome é o fantasma oculto na primeira seção, La Parte de los Críticos, em que uma crítica inglesa, um italiano, um francês e um espanhol se conhecem através da paixão comum pelo misterioso Archimboldi, genial escritor alemão sobre quem nada se sabe. A paixão literária descamba em sacanagem e logo um ménage à trois se impõe na narrativa, até que os críticos resolvem seguir uma tênue pista do escritor - um sujeito muito alto e muito branco, de magnéticos olhos azuis - e partem para Santa Teresa. O fã de Os Detetives Selvagens logo perceberá a semelhança entre esse enredo e a trama do romance que fez a fama de Bolaño. Não é só na busca desesperada por um autor enigmático (Cesárea Tinajero, em Detetives, e Archimboldi, em 2666) que se perde no deserto mexicano. De fato, há também em comum naquele romance de 55 narradores e nesta seção de 2666 a polida polifonia de Bolaño, que abusa do narrador indireto livre. O chileno é craque nessa oblíqua forma de narrar, espécie de mistura do fluxo de consciência com a narração na terceira pessoa. Pelo espontâneo jorrar de histórias saídas da pena de Bolaño, em que não raro um personagem ou detalhe de uma seqüência surge protagonista ou chave de enredo no período seguinte, diria que o chileno inventou algo que eu chamaria de fluxo de onisciência. É estranho como se ouve a voz peculiar do narrador detrás dos mais variados ângulos de narração, como nas seções La Parte de Amalfitano e La Parte de Fate, de que são protagonistas personagens totalmente diversas. Amalfitano é um melancólico professor chileno de literatura que se exila em Santa Teresa com a filha - em sua vozecoam as prisões, os exílios, as torturas, a perda de identidade nacional e dos ideais utópicos sentidos pela intelectualidade latina entre os anos 60 e 80. Já Oscar Fate é um jornalista negro, de Nova York, especialista em política afro-americana, forçado a viajar a Santa Teresa para cobrir uma luta de boxe entre um chicano e um Yankee. Só que ele prefere seguir pistas que desvendem os crimes sexuais. Fate, que acaba de perder a mãe, simboliza o sujeito cujo destino mora nas franjas da "realidade" - de que teve vislumbres, mas nunca logrou apreender; símbolo do leitor-detetive, ou do autor-esfinge. Por fim, a maravilhosa quinta parte se refere diretamente a Archimboldi - e ali está a história que os críticos da primeira parte tanto procuravam. É a seção que conecta todas as outras - no entanto, embora deslumbre, não exibe nenhuma justificativa para o livro, para os assassinatos, nem para o número 2666. O fluxo de onisciência de Bolaño aqui atinge as alturas mais altas, e aquela humilhação de que falei no início dá lugar ao assombro: mas como é que esse magricela doente tinha tanto fôlego? Sua escrita, embora à primeira vista pareça cortazarianamente caudalosa, é fria, descritiva e contida. Há sopros de ironia, vôos eruditos, diálogos divertidos, metáforas bem-postas, imagens inesquecíveis. Mas, ao se procurar, por exemplo, por uma citação para situar o autor, percebe-se que o estilo de Bolaño não está em uma voz - mora na estrutura, no tom, na perspectiva do mundo. A volúpia pelo contar direto e puro, sem ornamento, sem psicologismo, sociologização ou apelo à metalinguagem, recoloca no primeiro plano da literatura contemporânea essa coisa tão simples e urgente quanto narrar, narrar, narrar infinitamente. Para definir sua escrita, uso a fala de um de seus personagens: "Me introduzo em seus sonos, em seus pensamentos mais vergonhosos, estou em cada tremor, em cada espasmo de suas almas, me meto em seus corações, esquadrinho suas idéias mais primárias, investigo seus impulsos irracionais, suas emoções inexpressáveis, durmo em seus pulmões durante o verão e em seus músculos durante o inverno, e tudo isso o faço sem o menor esforço, sem pretendê-lo, sem pedi-lo nem buscá-lo, sem coerção nenhuma, impelido somente pela devoção e pelo amor".

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