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Clássicos em quadrinhos

Carrol, Barrie, Proust, Camões, Machado, Eça, Nelson Rodrigues: Algumas das maiores obras da literatura mundial estão à disposição na forma de gibis

Por Jotabê Medeiros e Roberta Pennafort
Atualização:

Joyce, Barrie, Proust, Freud, Camões, Eça de Queiroz, Flaubert, Gilberto Freyre, Machado de Assis, Nelson Rodrigues. Nunca antes na história desse País se publicou tanta literatura em quadrinhos. Ou: antes temerosas, as HQs perderam a timidez e penetraram intimamente num território que evitavam, o da literatura consagrada. A maioria dessas obras não se perde na reverência extremada. Sua intenção é fazer, como arte autônoma, uma releitura daqueles clássicos da literatura. Historicamente, houve publicações esparsas de versões de clássicos literários, mas que frustravam expectativas. Antes, eram versões resumidas. ''''Eram versões para preguiçosos, para quem não tinha paciência de ler o livro e lia resumo no gibi. Agora, são coisas com mais ambição, o leitor pode ter lido o livro que vai ler os quadrinhos do mesmo jeito, é outra obra'''', diz Rogério de Campos, editor da Conrad, uma das mais ativas do mercado de quadrinhos. Na semana passada, chegou às livrarias talvez a obra mais iconoclasta desse veio quase inexplorado: Lost Girls 2, de Alan Moore (o celebrado autor de V de Vingança, Do Inferno e Watchmen) e Melinda Gebbie. Moore e Melinda Gebbie, que vêm dos quadrinhos underground, imaginaram Lost Girls com um conceito de literatura porno-erótica fantástica. Não é recomendável para crianças pequenas nem para quem está à procura de contos de fada convencionais. O livro é baseado nas meninas que inspiraram, respectivamente, Alice no País das Maravilhas (de Lewis Carroll), Peter Pan (de J.M.Barrie) e O Mágico de Oz (de L.Frank Baum). Alice, Wendy e Dorothy se encontram num hotel suíço pouco antes da 1ª Guerra Mundial. O resultado é um exercício de liberação sexual que chega às raias do sadomasoquismo - e inclui animais e personagens das histórias. Há inspiração da literatura pornográfica de um certo período, como The Oyster, Venus and Tanhauser e o trabalho de Aubrey Beardsley. O editor Rogério de Campos estabelece uma conceituação histórica importante no fenômeno ''''clássicos em quadrinhos''''. Campos enxerga um momento no mercado editorial brasileiro, no início dos anos 1980, em que parecia que os quadrinhos de autor se aproximavam das artes plásticas. ''''Parecia que as HQs seriam colocadas nas prateleiras com os livros de arte. Naquele momento, com a evolução das técnicas de impressão, parecia que iam se tornar um subgênero das artes visuais'''', recorda. A obra de autores como Moebius reforçava essa impressão. Nesse período, poucos autores se mantinham fiéis à idéia dos quadrinhos como arte narrativa, como Robert Crumb e Will Eisner, nos EUA. ''''Depois, aconteceram duas coisas quase simultâneas: a publicação de Maus, de Art Spiegelman, e a entrada dos mangás japoneses no Ocidente. O mangá é fundamental nessa história. Mesmo o Art Spiegelman já conhecia o mangá Gen Pés Descalços. O mangá recolocou a história em primeiro plano. Nos quadrinhos japoneses, o principal são as histórias, e isso até recupera o termo brasileiro, história em quadrinhos, que mostra que a história vem antes'''', considera Campos. Depois de Maus e dos mangás, os quadrinistas parecem ter recuperado a vontade de contar história. ''''A partir daí, eles foram encontrando espaço no mundo dos livros mesmo, da literatura, e acharam seus pares. Até os anos 1970, tudo era ligado aos grandes pintores, os quadrinistas se viam comparados a pintores, como Rembrandt. Agora, o que se vê é que têm mais a ver com narrativas literárias.'''' Muitas das novas edições são primorosas. É o caso de O Alienista, de Machado de Assis, revisitado pelos irmãos Fábio Moon e Gabriel Bá (Editora Agir). Outra edição muito interessante é a de Os Lusíadas, de Camões (Editora Peirópolis), na versão de Fido Nesti, um estreante discípulo de Gilbert Shelton e Angeli. Outras são meras adaptações simplificadoras, como é o caso de Casa-Grande & Senzala, de Gilberto Freyre (Global Editora), na versão de Estevão Pinto, Ivan Wasth Rodrigues e Noguchi. A Jorge Zahar editou bonita (e compacta) versão de Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust, com adaptação e desenhos de Stéphane Heuet. A Conrad publicou recentemente Gemma Bovery, de Posy Simmonds, baseada na obra de Flaubert (R$ 31,10), e A Relíquia, do português Eça de Queiroz (R$ 28,80), adaptada pelo gênio underground brasileiro Marcatti. Muitas editoras publicam adaptações históricas e literárias de olho nas prensagens subvencionadas pelo governo federal. Sugerem trabalhos encomendados. ''''Buscamos o contrário. Uma narrativa mais extensa, independente. E aí me bateu essa idéia do Eça. O Marcatti nunca tinha lido Eça, mas eu achei que tinha muito a ver com o universo dele. E ele ficou encantado'''', diz o editor Rogério de Campos. Há lançamentos que não são propriamente versões para os clássicos, mas que roçam de alguma maneira seu mundo. É o caso de Kafka, do norte-americano Robert Crumb (Editora Conrad) e de Sigmund Freud, do inglês Ralph Steadman (Ediouro, R$ 59,90). Crumb e Steadman são dois mestres dos comics e da ilustração, ajudaram a levar o gênero ao seu nível mais elevado. São obras de impressionante apuro estético. E não só a literatura, mas também o desafio do teatro.''''Optamos pela fidelidade a Nelson Rodrigues. Dá pena tirar uma ou outra palavra, mas tivemos de enxugar'''', diz Arnaldo Branco, que fez a adaptação para os quadrinhos de O Beijo no Asfalto (Editora Nova Fronteira), clássica tragédia teatral do autor carioca que estreou em 1961 (o desenho é de Gabriel Góes). Segundo Branco, o mérito da adaptação é inegável por um motivo muito simples: a família de Nelson Rodrigues ficou satisfeita com o resultado. Cada etapa do trabalho (a adaptação do texto ao formato dos quadrinhos e as ilustrações) levou cerca de um mês. Góes conta que se deixou influenciar mais pelo teatro do que pelo cinema. ''''Tem a iluminação de teatro, as sombras. Quis dar a impressão de ser uma peça mesmo.''''

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