PUBLICIDADE

Cinco gerações de gente ousada

Por Flavia Tavares
Atualização:

Na casa de Tiônio, era um entra-e-sai danado de poetas, músicos e artistas, um clima de festa constante. Seus quatro filhos - João, Antônio, Maria Vicência e Ana Perpétua - conviveram desde cedo com os boêmios e intelectuais de Lisboa. Bem verdade que a contragosto da mãe, dona Tereza, mas Tiônio não podia evitar. Era ali um dos pontos de encontro dos poetas do arcadismo, movimento literário que pôs fim à religiosidade do barroco e instaurou a racionalidade da arte burguesa. O próprio Tiônio, escrivão do Arsenal Real do Exército, era um poeta respeitado e, quando na Corte, improvisava versos de saudação à família real. Foram seus companheiros de arcádia que lhe deram a alcunha de Tiônio. Seu nome era Antônio Bressane Leite de Paula. Um dos freqüentadores mais assíduos da casa dos Bressane era Manuel Maria Barbosa du Bocage. Era ele o merecedor dos olhares mais reprovadores de dona Tereza. Não à toa - seus versos estavam mais para a sátira do que para o lirismo e mais para o erotismo do que para a inocência. Em uma ocasião, Bocage ficou doente e se hospedou na casa de Tiônio. Enquanto o anfitrião fazia a barba, o visitante sentou-se num canapé, uma banqueta de madeira, para papear. Estava de cuecas, e um preguinho solto no móvel rasgou-lhe os fundilhos. Bocage ficou fulo, esbravejou impropérios e, para sua surpresa, levou uma bronca. Seu amigo Tiônio considerou um absurdo o colega passar uma descompostura no canapé em prosa e o desafiou para um "tiroteio de quadras", um repente árcade. Assim se deu. Tiônio abriu os trabalhos: "Fugia do incêndio de Tróia, Lá desse incêndio voraz Enéas com o pai às costas E o moço com aquilo atrás." Bocage replicou: "Inda antes de haver mundo E antes de haver Adões, Já ele tinha o preguinho Com que rasgava calções." E ele mesmo pôs fim à peleja: "Quando a velha eternidade Aqui nesta casa entrou, Disse a este canapé Sua bênção, meu avô." Não houve vencedor na contenda. Mas o fim da história tem, sim, uma perdedora. Maria Vicência, filha de Tiônio, foi apaixonada por Bocage e, até onde se sabe, foi correspondida. A ela, o poeta dedicou muitos versos, disfarçando o nome da amada dentro de outro nome de mulher, Márcia. Mas não consumaram as núpcias. Não se sabe se pela fúria de dona Tereza ou se porque Bocage era declaradamente contra instituições como o casamento. Além disso, conforme foi revelado mais tarde, o mulherengo poeta também dedicava versos a Ana Perpétua, a mais nova das Bressane. O fato é que Maria Vicência nunca se recuperou da desilusão amorosa e somente aos 67 anos aceitou se casar com outro homem. Em 1807, Tiônio, já viúvo, fez as malas, de partida para o Brasil. Veio com suas duas pupilas e um de seus varões, o então capitão-tenente da Real Armada Portuguesa, Antônio Bressane Leite, com a mulher, Isabel Bressane Leite. O primogênito, João, havia se mudado para os trópicos em 1802 e se instalado em São João del Rei (MG), onde se tornou um rico minerador. Tiônio e os outros chegaram ao Rio de Janeiro a bordo da nau Martim de Freitas, há exatos 200 anos, em março de 1808. Maria Vicência e Ana Perpétua traziam em seus baús a deliciosa ousadia de ter flertado com um homem controverso e famoso como Bocage. Três gerações adiante, no início do século 20, três irmãs provocariam novo escândalo. Filhas de Brasílio Bressane, homem liberal, e Dulce Carvalho, extremamente rígida, Ivone e Júlia foram das primeiras mulheres a trabalhar no Ministério da Fazenda, em 1928, e não agradaram aos mais conservadores. E Marina engravidou - solteira. Dona Dulce, então, mandou a filha para a casa dos avós em São Paulo, onde ela deu à luz uma garotinha, Maria, em 1927. Quando Marina voltou com a menina para o Rio, dona Dulce inventou que a criança era adotada. Somente quando a mãe morreu é que Marina contou a verdade para as irmãs. Ela casou-se com Amynthas, que adotou Mariazinha e, dali por diante, oficializou-se no posto de pai da menina. Ninguém gosta de falar muito do assunto, até hoje. É na história de Mariazinha que temos um dos exemplos mais claros da verve das mulheres Bressane. Namoradeira que só, foi noiva aos 17 anos de um cadete do Exército. Só não casaram porque ele foi enviado em uma missão num fim de mundo do interior do Brasil e Marina não quis mandar a moça com ele. A quedinha pelo verde-oliva, no entanto, permaneceu. Em 1951, Mariazinha se casou com o coronel Celestino Alves Bastos. Ele era, como se dizia, um pão, e, apesar de já ter um filho com ela, não resistiu aos encantos de uma vizinha saliente. Mariazinha sofria, assim, a primeira grande traição e, num ato muito avançado para a época, pediu o divórcio. Uma atitude tão polêmica não sairia impune. Por pressão da família de Celestino, Mariazinha não conseguiu a guarda do filho, Aníbal. Já casada com seu segundo marido, o também coronel Gabriel do Amaral Alves (que, aposentado, trabalhava na Petrobrás), ela foi morar em Belém do Pará, em 1957. Lá, engravidou seis vezes - e perdeu os seis filhos. Nem Bocage nem os românticos que viriam em seguida conseguiriam declamar uma dor tão grande quanto a de Mariazinha. Quando Gabriel foi transferido para São Paulo, ela finalmente teve uma alegria. O filho que ficara para trás cresceu, tornou-se um garoto meio rebelde e foi expulso do Colégio Militar no Rio. O pai, Celestino, não gostou nada. Mandou o filho morar com a mãe, em São Paulo. Era o reencontro de Aníbal e Mariazinha. Pouco tempo depois, ela engravidaria novamente. A gestação vingou: Maria Gabriela do Amaral Alves nasceu em 1963. Mariazinha não precisava, mas queria trabalhar. Comprou uma Kombi, onde carregava objetos de decoração que comprava para revender. Já com mais de 30 anos bem vividos, ela iniciava a carreira de decoradora . "Foi uma das primeiras decoradoras da cidade e tinha um gosto refinado", conta Gabriela. Com a loja Bressane Decorações, fez tanto sucesso que precisou abrir uma fábrica, com cerca de 100 funcionários. E, quanta ousadia, uma loja em Salvador. As freqüentes viagens para a Bahia desagradavam ao coronel. Na ausência de Mariazinha, uma de suas melhores amigas deu em cima de Gabriel, e ele cedeu. Era a segunda traição enfrentada por ela e, em 1982, o segundo divórcio.Com dois filhos para terminar de criar, não houve tempo para Mariazinha chorar as pitangas. A loja de Salvador já estava fechada e ela acalentava havia anos um sonho que nenhum de seus dois maridos quis ajudar a realizar: comprar a outra parte de uma fazenda da família, que tinha sido de Brasílio, em Valença (RJ). Um pedaço da terra já era dela, mas faltava a sede da fazenda. Um ano depois da separação de Gabriel, outro coronel batia à porta de Mariazinha. Ele precisava de ajuda para decorar um apartamento, pois estava de mudança do Rio para São Paulo, com a terceira mulher. O que não se poderia imaginar é que que esse coronel era Amílcar de Magalhães, aquele cadete que fora seu primeiro noivo. O reencontro foi arrebatador. A paixão entre os dois resultou no terceiro divórcio do coronel e no terceiro casamento de Mariazinha. Amílcar era tão devotado à esposa que realizou seu sonho: comprou a sede da fazenda para ela. Juntos, eles restauraram a casa e a transformaram em hospedaria. Ele morreu em 1998. "Mamãe foi apaixonada pelos maridos. Mas com Amílcar foi realmente feliz", conta Gabriela, sentada no sofá desenhado pela mãe. Em 2002, Mariazinha morreu. Dizer que apenas as mulheres da família Bressane tiveram destaque seria injustiça. O segundo filho do poeta Tiônio, Antônio, serviu como militar à família real, chegando a ser promovido a coronel com carta de recomendação assinada de punho por d. João VI. Na década de 1920, nasciam os irmãos Nestor e Oscar, do ramo paulista dos Bressane. Ambos advogados, formados na Faculdade de Direito São Francisco, foram contemporâneos na universidade de Jânio Quadros e Ulysses Guimarães. Em 1942, Oscar chegou a presidente do Centro Acadêmico XI de Agosto, posição de grande prestígio na época. Sua ajuda na emancipação do distrito de Amarílis, em Marília (SP), rendeu uma homenagem e tanto: a cidade mudou seu nome para Oscar Bressane. Ele morreu em um acidente de carro, aos 27 anos. Anos mais tarde, quando já era um incorporador de imóveis bem sucedido, uma parente distante procurou Nestor. Era Mariazinha. A curiosidade pela história da família uniu esses dois primos, que não se conheciam. Ela buscava informações sobre seus antepassados para desenhar uma árvore genealógica. Ele gostava tanto do assunto que havia escrito um livro. Tornaram-se amigos e trocaram figurinhas até a morte de Nestor, em 1997. Dois Bressanes que se encontravam para levantar memórias da família, em clima constante de festa. O poeta Tiônio teria orgulho.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.