Arte popular encontra arte erudita na mostra 'Quase Figura, Quase Forma' em São Paulo

Duas galerias se unem para produzir mostra que reúne tendências

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Por Antonio Gonçalves Filho
Atualização:

A "tarefa delicada" que o crítico e curador Lorenzo Mammì se impôs com a exposição Quase Figura, Quase Forma, aberta nesta quinta-feira, na Galeria Estação, vai além de colocar lado a lado obras produzidas por artistas de formação erudita e criadores populares. A mostra reúne não apenas obras de tendências distintas, mas duas galerias que trabalham em diferentes direções - a Estação, mais ligada aos populares, e a Millan, concentrada nos contemporâneos eruditos. O risco, no caso, seria o de criar uma incômoda hierarquia entre eles ou mesmo uma escala de valores por vezes injusta. Por esse motivo, ao aceitar o convite das galerias para escolher as obras, Lorenzo Mammì pensou mais na convergência entre as duas vertentes do que nas diferenças. Para Mammì, a volta à figuração nas três últimas décadas aproximou os contemporâneos eruditos dos artistas de matriz popular. A geração de pintores hoje na faixa dos 50 anos, representada na mostra por artistas como Fábio Miguez (52), Paulo Pasta (54) e outros, dialoga tanto com seus discípulos - Ana Prata (34), Marina Rheingantz (31) - como com sensíveis pintores e escultores populares, entre eles Neves Torres, dono de uma paleta clara, renascentista, e Ranchinho (1923-2003), filho de agricultores e autodidata, que participou de bienais.

Após a ressaca da arte conceitual nos anos 1970, a pintura retomou sua força nos anos 1980 com a emergência dos neoexpressionistas, que marcaram a geração de Miguez, Pasta e do pintor Sergio Sister (66). A fotografia e o vídeo ajudaram a retomar a ligação com a imagem nos anos 1980, segundo Mammì. "Talvez seja possível dizer que o século 20 foi tendencialmente o da abstração, enquanto o século 21 começa como século figurativo", observa o curador, citando Pasta, um pintor que fica no limiar entre a abstração e a figuração. “Ele prepara o cenário para que algo como uma figura apareça, mas não deixa que ela se cristalize." As formas que surgem da superfície das telas de Pasta podem sugerir vigas e colunas, observa Mammì, mas apenas "sugerem". São quase pretextos para a pintura, como as garrafas e vasos de Morandi. A valorização da arte popular no Brasil, lembra o curador, já era uma preocupação dos modernistas de 1922, particularmente de Mário de Andrade, passando por uma sucessão de movimentos cujos mentores (Mario Pedrosa, por exemplo) tinham o compromisso ideológico de legitimar uma arte (como a dos doentes mentais) rejeitada pelo sistema de arte. Ranchinho, por exemplo, sofria de transtornos graves, assim como Bispo do Rosário, mas deixaram um legado hoje reconhecido pelo mundo erudito. "A arte popular também evolui", observa Mammì, citando dois artistas de uma sofisticação formal rara, Véio (Cícero Alves dos Santos) e José Bezerra, que reciclam troncos e criam criaturas fantásticas. Sobre os contemporâneos eruditos da geração mais nova, o curador nota uma tendência a valorizar mais a questão formal, ainda que "desconfiando de formas muito assertivas". O curador cita a pintura de Marina Rheingantz como exemplo - uma dela em particular, a tela Sigmar, deste ano, em que manchas vermelhas sugerem uma revoada de insetos. Nela, "cada traço remete a alguma coisa, embora nunca de maneira unívoca". Um artista que oscila entre o popular e o erudito na mostra é o mineiro Lorenzato (1990- 1995) que, apesar da origem modesta, conheceu museus e trabalhou como restaurador em Roma. “Ele, no entanto, é um caso atípico”, conclui o curador da exposição. 

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