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Armadilhas de Tunga criadas entre realidade e ficção, drama e loucura

É no aparentemente caótico, que obedece às leis insondáveis da filosofia, da ciência e da psique, que artista, morto aos 64 anos, funda sua ordem

Por Maria Hirszman
Atualização:

Releia o texto que o Estado publicou em 18/11/2007 sobre o artista Tunga

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Antonio José de Barros Carvalho e Mello Mourão é um nome e tanto. Parece já conter nas circunvoluções sonoras algumas pistas capazes de auxiliar na árdua tarefa de definir a obra do artista nascido em Pernambuco e que se tornou nacional e internacionalmente conhecido por Tunga. Assim como no jogo aparentemente contraditório entre extensão e síntese protagonizados por seu nome e apelido, o artista tem como marca central a permanente exploração do contraditório, a capacidade de condensar numa mesma ação elementos absolutamente díspares e potentes.

Quer nas "instaurações" (como costuma chamar suas instalações-performances), quer nos desenhos ou nos livros, Tunga realiza um duplo processo mobilizador: ao mesmo tempo em que se situa no campo do eterno retorno, da repetição mântrica de um conjunto restrito de elementos de forte carga simbólica, ele coloca em ação uma série de estratégias para romper com os padrões institucionais, formais da arte. Nega o estatuto da obra, ao construí-la em parceria com o público e até mesmo com as moscas que atrai e aprisiona em armadilhas de melado; nega a ideia de autor, ao confundir-se com sua própria obra. Esfacela os limites entre realidade e ficção, entre drama e loucura.

'Semeando Sereias' (1987), de Tunga Foto: Wilton Montenegro|Reprodução

Mito e realidade se associam, numa trama que vai muito além do suporte material de cada experiência individual e que também extrapola o significado fechado de cada construção poética para integrar-se no conjunto de sua produção. Nesse processo de integração - que remete à importância do ímã nos trabalhos de Tunga -, as várias experimentações ressignificam-se a si próprias e também agregam novos caminhos de leitura e interpretação à toda sua obra. Assim, a potência sensível da arte vai muito além de estado físico, tangível e fetichista da matéria, tornando-se um amálgama no qual a criação e a recepção se aproximam.

Segundo Suely Rolnik, é por meio da palavra que isso se torna ainda mais evidente. "Nestes textos, onde ficção se entrelaça com dados objetivos e biográficos, obra e vida tornam-se inseparáveis - a vida se mostra obra, e a obra, cartografia da vida", escreve ela em ensaio publicado por ocasião da exposição Tunga: 1977-1997.

As armadilhas de Tunga para seduzir e envolver o espectador lembram a já citada armadilha de luz e melado para atrair os insetos. Os símbolos a que recorre para construir sua poética (ossos, tranças, cabelos, animais, vidros...) constroem não apenas estruturas visuais a serem apreendidas pelo olhar e elaboradas racionalmente. Atuam também corroendo a razão, agindo no inconsciente e mobilizando outras formas de percepção. "Como toda grande arte, engaja corpo e alma, matéria e espírito", sintetiza com precisão Paulo Sergio Duarte.

É como se ele buscasse nesse processo tocar um nervo exposto, dolorido, que possui dimensões ao mesmo tempo universais, sociais e individuais. Exemplos não faltam, como a fascinante experiência de semear sereias, criada para a Bienal de São Paulo de 1987, o livro Barroco de Lírios, lançado uma década depois pela Cosac Naify, e no antológico filme feito por ele em parceria com Arthur Omar, intitulado Nervo de Prata.

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É naquilo que aparentemente é caótico, que obedece às leis insondáveis da filosofia, da ciência e da psique que  Tunga funda sua ordem. E é num processo de continua repetição, de fluxo permanente e sinuoso (seja o fio de cabelo, o traço do desenho ou a linha tênue que conduz raciocínio e emoção paradoxalmente para uma mesma direção) que ele está permanentemente rompendo paradigmas. Apóia-se na tradição, busca referência nos arquétipos, mas não se prende a eles. Como diz o próprio artista na abertura de Barroco de Lírios, ele reencontra "o novo no velho": "Sempre gostei de bagunça. Não de ordem nem desordem. Bagunça. O que tenho à mão vou mexendo até perder, pra depois achar de novo. Achando o que perdi acho o novo de novo, reencontro o novo no velho - é como a luz, a velha luz, descansada e sempre nova de novo", escreve.

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