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Análise: Alquimia de Pierre Huyghe se processa no terreno da experiência total

Digamos que este artista possui a rara capacidade de provocar suspense, fascínio e curiosidade

Por Sheila Leirner
Atualização:

PARIS – Se fosse apenas para que o seu nome prestigiasse ou fizesse “figuração” na 32 a edição da Bienal paulista, seria uma grande pena que um artista da qualidade de Pierre Huyghe comparecesse pela primeira vez em nosso país com apenas um vídeo de 12 minutos e 35 segundos, de 2014, e uma sala de insetos. É no fecundo e variado conjunto de sua imensa obra, pouco conhecida do grande público, mas que hoje representa um fenômeno na esfera da arte contemporânea, que se processa a alquimia. Teria valido a pena abrir mão de parte da extensa (e discutível) lista de escolhidos, e trazê-lo muito melhor representado.

Quanta coisa poderia fazer in loco, caso fosse convidado a vir se inspirar em algum ecossistema brasileiro! Raros artistas entram na realidade física do planeta, como ele, trazendo ideias, imagens, objetos e linguagens que aproximem, de tal maneira, a arte da vida. Não que Huyghe seja um artista fácil. Muito ao contrário. Tudo em suas elaborações e montagens é espinhoso, sem favores, não atraente, às vezes até mesmo repulsivo e, aparentemente, incompreensível. Elas são antípodas de tudo que conhecemos de belo, linear e agradável na arte ou em exposições de arte. Pertencem mais ao terreno transcendente, instável e misterioso da experiência total e do desconhecido, do que ao espaço seguro do reconhecível.

Obra de Pierre Huyghe exposta na Documenta 13 e em sua retrospectiva Foto: Jason Redmond/REUTERS

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As obras de Pierre Huyghe são para quem não teme as sensações fortes, mas sobretudo para quem sabe que, no seu caminho tortuoso, é preciso um bom esforço para merecê-las. Apesar de nós, e graças a nós. E sob o risco de um desregramento da percepção. A obra dele é um teatro, ou um gabinete de curiosidades, invertido. Somos nós que ficamos expostos.

O que é o este trabalho? A retrospectiva, apresentada pelo Pompidou, em Paris, há três anos, conseguiu dar-lhe um corpo, talvez, pela primeira vez. As salas de exposição se transformaram, durante dois meses, em uma espécie de microcosmo orgânico vivo e caótico, com seu microssistema um pouco úmido, rochas seculares, um tríptico em três dimensões que oferecia chuva, neblina e neve, objetos e traços das exposições precedentes.

Havia fragmentos, obras de (e referências a) outros artistas, vídeos, esculturas, ambientes, instalações feitas de diversos materiais como gelo e areia, aquários surrealistas, personagens vivos e muitos bichos. Caranguejos-eremitas, abelhas (na mesma obra que esteve na última documenta de Kassel, com a colmeia que envolvia a cabeça de uma escultura clássica), aranhas, formigas e o indefectível Human, o famoso cachorro branco com a pata cor-de- rosa que dorme em casacos de peles.

É bom lembrar que insetos milenares também estarão presentes, enclausurados numa belíssima pedra de âmbar, nas microcenas do filme De-extinction a ser apresentado pela Bienal. Também haverá uma sala com moscas. De-extinction, ou “biologia da ressurreição”, ou ainda “revivalismo da espécie”, é o processo controvertido de criar um organismo que seja um membro de (ou que pareça com) espécies extintas, como a clonagem, por exemplo. Esta é uma das questões que interessam Huyghe, artista que, desde 1990, trabalha na redefinição do estatuto da obra de arte.

Mas ele empenha-se também na contrassignificação do formato de exposição, que ambiciona tornar um espaço sensível, a dimensão viva, orgânica e não orquestrada de propostas. A mostra de arte, como um mundo recriado que se autorregenera, vivendo os próprios ritmos, onde os componentes são sempre superpostos, como se fossem um “diário”, uma escritura em três dimensões.

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Para certas tribos indígenas, entrar no mar - universo estranho e completo no qual não vivemos - não pode ser uma coisa corriqueira. É preciso, antes, um ritual pedindo “permissão”. Para cruzar a porta do labirinto pessoal de Pierre Huyghe, também é necessário uma certa contensão. Mesmo que não haja um caminho certo para a visita e que tudo seja permitido - tocar as obras, acariciar o seu cachorro, deitar na areia ou sentar no chão - não se ingressa no seu “mar” onírico desabusadamente.

Digamos que este artista possui a rara capacidade de provocar suspense, fascínio e curiosidade, fazer pessoas de qualquer classe social, cultura e idade, crianças inclusive, reconhecerem certos elementos que lhes são familiares e - mesmo sem saber exatamente a razão - sentirem que estão vivendo uma experiência excepcional, e em comunhão. Como na recepção de um sacramento, não divino mas, de alguma forma, sagrado. O que mais pedir de um artista?

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